A lei sou eu
A lei sou eu
“Sim, porque sim”. Pode-se dizer que esta é uma das formas mais antigas de autoritarismo no mundo.
Quando não se consegue fundamentar algo e se deseja fazer aquilo, a resposta é: “porque sim”; quando não se quer prestar contas, novamente: “sim, porque sim”; quando não se consegue justificar a realização de determinada coisa, eis que surge a resposta mágica: “sim, porque sim.”
O atual processo penal brasileiro – para não falar em processos penais, no plural, uma vez que cada magistrado, cada julgador, cada Tribunal tem o seu e todos esses “valem” – pode ser resumido desta maneira: o processo do “sim, porque sim!”
Num Estado Constitucional de Direito, o ordenamento jurídico deveria ter algum significado, alguma força, alguma valia e alguma sanção para quem o descumprisse.
É o que deveria ser, mas não é.
Falar-se em supremacia das normas constitucionais, em prevalência da Constituição Federal tornou-se algo poético; é algo bonito e belo que todos veem como aquilo que deveria ser alcançado um dia, porém, não agora [a bem da verdade, por falta de vontade].
O processo do “sim, porque sim” é o processo do decisionismo, da arbitrariedade, onde não há paridade de armas e tampouco respeito ao devido processo legal. São ilustres desconhecidos.
Nesse processo penal, o legal – aquele decorrente da lei – não tem espaço. O que vale é o ilegal, que deixa de ser ilegal por não haver, em tese, um prejuízo.
A lei sucumbiu à discricionariedade dos julgadores: vale aquilo que o julgador entende que deva ser, mesmo que seja diretamente contrário ao Código de Processo Penal ou à Constituição Federal.
E a culpa disso tudo é bastante clara: dos nossos Tribunais Superiores, que vem, cada vez mais, extinguindo as nulidades do processo penal. Não há mais procedimento a ser seguido. Não há mais nulidade a ser reconhecida, salvante se a defesa, num exercício de milagre, conseguir comprovar a ocorrência de um prejuízo.
Bem, trata-se de questão “meio” óbvia: que prejuízo é este que deve ser comprovado? No processo, poderia existir um prejuízo jurídico maior do que a condenação do réu pelo Magistrado que não seguiu o procedimento legal…?
Como fazer esse milagre de comprovar prejuízo perante os Tribunais pátrios? Que prejuízo deve ser demonstrado, afinal, já que a condenação não basta? O que de pior pode existir num processo…?
E mais. Como acertar na loteria? Em alguns casos (e aí se percebe como a isonomia não pertence ao Poder Judiciário), entende-se caracterizado o prejuízo e a nulidade é reconhecida. E, em tantos outros semelhantes ou até mais gravosos, a nulidade, simplesmente, não é reconhecida, por ausência de “demonstração de prejuízo.”
O Poder Judiciário anda muito mal – e mau! – em relação à igualdade. Embora não seja o tema da presente coluna, convido aos caros leitores a fazerem uma rápida pesquisa no Tribunal de Justiça do respectivo Estado sobre o reconhecimento da minorante do tráfico privilegiado (art. 33, §4º, da Lei n.º 11.343/2006) e verão os mais diversos disparates: que, em casos muito semelhantes ou muito menos gravosos, a minorante fora negada aos réus, sabe-se lá o porquê, ao passo que, em casos mais graves, ela fora reconhecida.
Retornado ao tema, veja-se que a Constituição da República, em seu artigo 93, inciso IX, prevê que todas as decisões do Poder Judiciário devem [leia-se: deveriam] ser fundamentadas. Mais. O texto constitucional consagra, expressamente, uma penalidade às decisões imotivadas: a nulidade do ato.
Logo, na ordem jurídica pátria, no âmbito do Poder Judiciário, não se poderia admitir o “sim, porque sim”. Apesar disso, ele é comum ao nosso processo. É, infelizmente, a regra no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais.
Vamos aos exemplos: o “sim, porque sim” é corriqueiro na violação do artigo 212 do CPP e característico das decisões que indeferem pedidos de revogação da prisão preventiva ou de substituição dela por medidas cautelares alternativas – evidentemente sem fundamentação nenhuma, já que se trata do “sim, porque sim”.
No âmbito das medidas cautelares diversas da prisão a situação beira ao ridículo. Dispõe o artigo 282, §6º, do CPP: “a prisão preventiva será determinada quando não for cabível a substituição por outra medida cautelar (art. 319).” Ou seja: as medidas cautelares do artigo 319 do CPP preferem à prisão [leia-se: deveriam preferir à prisão].
Porém, como funciona na prática? Pois bem. Os julgadores têm, sistematicamente, mantido a prisão preventiva sob o argumento de que as “medidas cautelares alternativas do artigo 319 do CPP” não se mostram cabíveis/suficientes para a tutela do processo, da “ordem pública” etc.
O busílis é: por que não são cabíveis? Por que não são suficientes? Com base no que, em que dados e informações se decidiu isso? Nunca se diz. Nunca se explica, justifica, motiva e fundamenta. E por quê? Porque é sim, porque sim. Porque se decide sem fundamentar.
Nos casos de violação discricionária ao artigo 212 do Código de Processo Penal a situação é semelhante. Normalmente, a lei deixa, simplesmente, de ser observada, de ser aplicada pelos julgadores, que sequer se manifestam a respeito. Sequer explicam o motivo de não respeitarem ao Código de Processo Penal.
Eis outra questão: o único modo, num Estado jurídico sério, que se pretenda Constitucional de Direito, de deixar de aplicar uma lei ordinária é invocando a sua inconstitucionalidade, por incompatibilidade com a Constituição da República, e apresentando assim, mediante fundamentação concreta, os motivos de não aplicação daquela lei, por afrontar a determinados (e discriminados) dispositivos/princípios constitucionais.
E como funciona na realidade? Simplesmente se ignora a lei. Nesse caso, nem de sim, porque sim, se trata. Não se diz nada.
E esta vontade – evidentemente autoritária e soberana -, que vale mais do que o ordenamento jurídico, macula impunemente o procedimento consagrado em lei. Os atos não são anulados [ou não estão sendo anulados]. Ao contrário: são chancelados, legitimados sem fundamentação razoável, exigindo-se que o réu – que não deu causa ao desrespeito do procedimento – demonstre o prejuízo que ele não originou.
Mas, Senhoras e Senhores, poderia existir prejuízo maior para um acusado do que ser julgado por um Juiz que não respeita a lei?
Como esperar que um Magistrado que não respeita a lei, aplique a lei? Ou, talvez, a lei não seja a lei, a lei é ele?
Quem é a lei no processo penal brasileiro?
Ou melhor: o que é lei? Paridade de armas? Isonomia? Contraditório prévio à prisão (art. 282, §3º, do CPP), devido processo penal? Ampla defesa? Plenitude de defesa?
Nunca nem vi…