A linguística forense na detecção de mentiras
A linguística forense na detecção de mentiras
A linguística forense é uma área da linguística que aplica os conhecimentos da linguagem no contexto jurídico. São utilizadas metodologias científicas para analisar cartas, e-mails, mensagens de texto, áudios, confissões ou discursos gravados em vídeo em quaisquer situações onde vestígios linguísticos estejam disponíveis para serem considerados evidências.
Algumas das aplicações desta área de estudo são: interpretação da lei, identificação de autoria da voz, instrução de júri, avaliação de contratos, análise de ameaças, investigações relativas a direitos autorais, crimes contra a honra e interrogatórios. [1]
Na esfera criminal, a Linguística Forense recebeu bastante atenção midiática após ser utilizada em casos de grande repercussão internacional, como a captura de Theodore Kaczynski (famoso terrorista conhecido como “Unabomber”). Foram analisadas cartas enviadas junto com suas bombas e seu manifesto a procura de indicadores linguísticos que pudessem ajudar a identificar o suspeito.
A partir destas avaliações, foi possível elencar características como a idade do sujeito, sua origem geográfica, região de moradia, nível de escolaridade e especialização acadêmica, além da sua herança religiosa. O perfil linguístico traçado para o Unabomber se mostrou mais preciso que o perfil comportamental elaborado sobre o suspeito. Este foi apenas um dos casos em que a linguística forense se destacou como ferramenta investigativa. [1]
Esta não é a única situação em que essa área de estudo demonstra um desempenho melhor que as técnicas priorizadas normalmente. No contexto de interrogatórios, a linguística forense também trouxe resultados mais promissores do que a tão difundida análise de linguagem não verbal (ou linguagem corporal) para detecção de mentiras.
Em um estudo, o potencial deste campo foi evidenciado quando pessoas que ouviram um discurso gravado (sem verem as imagens) obtiveram maior sucesso detectando mentiras do que o grupo que teve acesso apenas ao conteúdo visual da mesma conversa. Isso pode corroborar a ideia de que observar os canais verbal e não verbal ao mesmo tempo pode sobrecarregar a atenção do interrogador e dificultar sua detecção.
Aparentemente, focar nos gestos e expressões faciais do entrevistado também não oferece conclusões tão esclarecedoras como se acredita popularmente [2] (para mais informações sobre críticas feitas à análise de linguagem corporal, veja o artigo “Análise da Linguagem Corporal para detectar mentiras no interrogatório”, disponível aqui no Canal).
Ainda não foi desenvolvida uma teoria completa para explicar o comportamento verbal durante as mentiras, mas existem modelos teóricos que esclarecem alguns tópicos sobre o tema. Estes se baseiam na premissa de que comunicação de pessoas que estão mentindo é diferente da linguagem de indivíduos que estão dizendo a verdade [3]. Existem divergências quantitativas e qualitativas que podem ser identificadas para análise, como a riqueza de detalhes na narrativa. Geralmente os discursos verdadeiros apresentam mais detalhes do que os falsos, apesar disso não ser uma regra [2] [4].
A hipótese do dilema do mentiroso (liars’ dilemma hypothesis) pode nos ajudar a entender melhor o que acontece: Quem mente sabe que um maior número de detalhes é sinal de veracidade e pode aumentar suas chances de enganar quem ouve. Entretanto, ceder mais informações pode criar mais formas de ser pego mentindo. Desta forma o mentiroso soluciona o dilema fornecendo o máximo de detalhes não verificáveis que puder, preenchendo a sua história com dados que não podem ser checados. Ao ser perguntada sobre um evento, uma pessoa pode responder que estava com seu tio.
Ela sabe o nome do tio e sabe que o entrevistador pode perguntar isso, mas ela tem um pouco mais de tempo para pensar do que se tivesse dito que estava com seu tio Pedro imediatamente, por exemplo. É esperado que o discurso de alguém que está mentindo apresente esse tipo de omissão, enquanto pessoas que estão falando a verdade poderão compartilhar dados mais completos espontaneamente [5].
Exemplos de detalhes não verificáveis envolvem aspectos sensoriais, como emoções, impressões, cheiros ou sabores vivenciados pelo indivíduo. É possível enriquecer bastante uma narrativa com esses fatores e mesmo assim não fornecer pistas que possam ser verificadas, pois todas estas só podem ser experimentadas por quem as vivencia. Na maioria dos casos, este tipo de informação estará mais presente no discurso de mentirosos, enquanto indivíduos que dizem a verdade apresentam uma proporção mais equilibrada de detalhes verificáveis e não verificáveis [5].
Outro recurso utilizado na mentira é o “Self-handicapping”, ou desvantagem autoinduzida (tradução livre). Ocorre quando um sujeito acrescenta na fala motivos fantasiosos para convencer alguém de que não teve acesso a certas informações sobre determinado evento.
Por exemplo, são apresentadas respostas como “eu acabei saindo mais cedo de lá e não vi o que aconteceu”, “eu não lembro de ter visto isso” ou “eu estava no banheiro nesse momento”. Todas essas respostas podem possuir o mesmo objetivo: isentar o sujeito da responsabilidade de fornecer detalhes. É claro que também podem ser verídicas, já que não existe nenhum sinal linguístico que seja indicador de mentira por si só.
Até hoje, não foi desenvolvido um método de detecção que seja a prova de erros, o que significa que quaisquer técnicas precisam ser aplicadas com cautela. Não é porque alguém disse que não viu algo e forneceu poucos detalhes que iremos concluir que é uma mentira necessariamente. Isso seria uma interpretação irresponsável. Além disso, existem situações complexas que irão precisar de mais detalhes para serem descritas do que outras, e há pessoas mais comunicativas e verbalmente articuladas que apresentarão discursos mais elaborados que outras [4].
Além dos fatores mostrados até aqui, o discurso falso também apresenta outra peculiaridade: mais informações de senso comum. O mentiroso pode incrementar sua história com detalhes que são de conhecimento popular, o que não atesta a veracidade da sua versão. Entretanto, a riqueza de detalhes pode confundir o interlocutor e acabar sendo eficaz para enganá-lo.
Sujeitos que dizem a verdade apresentam mais dados que não estão disponíveis para qualquer pessoa. Exemplificando, saber informações sobre o clima e atrações turísticas de uma cidade não prova que alguém esteve lá, já que é muito fácil ter esse tipo de conhecimento. Neste caso, vale a pena perguntar o nome do hotel em que a pessoa supostamente ficou, por exemplo.
Ainda podemos analisar o discurso verdadeiro para que saibamos o que esperar quando alguém está apresentando uma história sincera. Ou seja, também é importante que se detecte verdades. Para isso, podemos utilizar o conceito de complicadores.
Este termo se refere a informações que não são necessárias para a explicação de um evento, pois são detalhes que tornam uma narrativa mais complexa do que seria preciso para comunicar algo. Essa característica linguística está presente com mais frequência em discursos verdadeiros. Se alguém fala sobre como foi uma viagem, é esperado que existam partes desnecessárias ao invés de apenas os fatos mais impressionantes ocorridos durante o período [4].
Finalmente, devemos lembrar que não existe uma técnica de detecção de mentiras que sirva para qualquer situação e tenha resultados inquestionáveis. A análise da linguagem verbal pode ser utilizada em contraponto à linguagem não verbal, já que a interpretação de gestos e expressões faciais apresenta uma frágil fundamentação científica quando se trata de identificar quando alguém está mentindo (apesar de ser bastante popular na mídia). A questão da mentira no contexto do interrogatório é de extrema relevância jurídica, já que a má interpretação do depoimento pode causar graves danos à vida das pessoas envolvidas no processo penal [3].
Como toda metodologia, a aplicação da linguística no interrogatório também tem suas falhas e dificuldades, além de ocasiões em que sua aplicação deve ser ainda mais cuidadosa. Por exemplo, em um caso de abuso infantil. Crianças possuem menos recursos linguísticos (menor vocabulário, por exemplo) e vítimas de abuso normalmente não estão dispostas a narrar o ocorrido com riqueza de detalhes por questões sócio-emocionais.
Isso pode ser confundido com sinais de mentira, já que o depoimento teria menos detalhes, menos complicadores e ainda poderia ter uma fala que procurasse distanciar a vítima do ocorrido. Outra situação em que a detecção seria particularmente complicada envolve uma pessoa utilizando memórias reais para contextualizar uma mentira. É possível recrutar lembranças sobre um jantar em um restaurante e mentir sobre em que país ficava o mesmo, por exemplo [3].
Em conclusão, é importante procurar ferramentas investigativas atualizadas e que possuam um embasamento científico cada vez mais sólido para garantir a maior eficácia possível. Aqui foi exposta uma técnica alternativa que tem demonstrado ser bastante promissora para detectar mentiras. Talvez no futuro possamos compreender de forma mais profunda como funciona este tipo de comportamento, quando houverem teorias mais robustas e tecnologias mais confiáveis para analisar este fenômeno. A linguística forense pode ser uma delas, ou pelo menos uma base para as que virão.
FONTES
[1] Forensic Linguistics: Applying the Science of Linguistics to Issues of the Law. Robert A. Leonard, Juliane E. R. Ford, Tanya Karoli Christensen
[2] Verbal Deception and the Model Statement as a Lie Detection Tool. Aldert Vrij, Sharon Leal and Ronald P. Fisher
[3] ‘Language of lies’: Urgent issues and prospects in verbal lie detection research. Galit Nahari, Tzachi Ashkenazi, Ronald P. Fisher, Pär‐Anders Granhag, Irit Hershkowitz, Jaume Masip, Ewout H. Meijer, Zvi Nisin, Nadav Sarid, Paul J. Taylor, Bruno Verschuere, Aldert Vrij
[4] Within‐subjects verbal lie detection measures: A comparison between total detail and proportion of complications. Aldert Vrij, Sharon Lea,l Louise Jupe, Adam Harvey
[5] Digging Further Into the Speech of Liars: Future Research Prospects in Verbal Lie Detection. Galit Nahari and Zvi Nisin
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