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A meta-hermenêutica dos decretos estaduais: um problema de legitimidade normativa

A meta-hermenêutica dos decretos estaduais: um problema de legitimidade normativa

Por Patrick Assunção Santiago

Atravessando o terceiro mês de quarentena, e sofrendo uma das mais dramáticas crises do século, Prefeitos e Governadores impõem decreto de quarentena obrigatória sob pena de prisão em flagrante para quem descumpri-la. 

Longe de discutir se devemos ou não ficar em isolamento social, este texto visa esclarecer a legitimidade deste tão polêmico decreto, a fim de compreender as razões jurídicas de tal pretensão normativa. 

Alegando incidência do artigo 268 do Código Penal, prefeitos e governadores ameaçam a população brasileira para que fiquem em suas casas, visando a não propagação do vírus que, até então, já vitimou centenas de milhares de pessoas. Acontece que, como sabemos, a medida de prisão existe sob uma lógica processual, na qual se exige certa liturgia. Tal lógica processual é facilmente traduzida no brocardo latino: “Nullum Crimem Sine Lege”. Não há crime sem lei. 

O brocardo latino é um axioma acessível e dedutível à razão prática, afinal, ele é um dos elementos fundantes da estrutura fundamental de um estado de direito, não raro se confundindo com o próprio estado de direito. Tal fundamento é tão caro para o Rule of Law, que está presente no primeiro artigo do Código Penal que, lembrando as imortais palavras do dogmático Von Liszt, pode ser considerado uma “Magna Charta Libertatum”, alicerçado em um princípio central que é traduzido pelo fato de que tudo aquilo que os códigos não proíbem, é lícito. 

Os prefeitos e governadores ao proporem pena de prisão em caso de descumprimento de decreto estadual, buscaram precedentes não no direito, nem da doutrina nacional, mas na doutrina estrangeira, calcada no Estatuto de Roma. 

Acontece que, embora à primeira vista o decreto vise salvaguardar a saúde coletiva, precisamos atentar-nós ao fato de que não se pode resolver um problema a custo de iniciar outro, isto é, não podemos ferir de morte um direito fundamental sob a pecha de uma segurança abstrata. O seguro é promover a manutenção e efetivação do direito, não aboli-lo quando convém e sob qualquer fundamento. 

Faço lembrar que um decreto de calamidade pública não reflete em um estado de exceção; e lembro, também, que compete à União legislar sobre matéria de direito penal, e não a prefeitos e governadores. 

Penso que nem mesmo aplicando a mais forçosa das hermenêuticas poderíamos incidir o artigo 268, haja vista a estrutura exegética do artigo se traduz em crime abstrato. Nele, pune-se a conduta do agente, uma vez que o perigo à incolumidade pública é presuntivamente determinado. 

Prender civis por força do 268 é impor uma falsa antinomia, onde a dicotomia supostamente se daria entre o direito de ir e vir, constitucionalmente garantido, que estaria na contramão de um decreto municipal/estadual, nulo de efeitos penais onde, ainda que considerando o cenário hipotético, seria um problema facilmente solucionado por uma simples leitura da LINDB. 

Enquanto não for decretado o estado de exceção ou enquanto estivermos sob égide do princípio da reserva legal, o direito de ir e vir é absoluto, inviolável e irredutível à mera discricionariedade dos prefeitos e governadores. 

O princípio da legalidade é, nas palavras do imortal Nelson Hungria:

um anteparo do indivíduo em face da expansiva autoridade do estado.

Tal princípio transcende a esfera político-jurídico-penal, figurando-se como face expressiva de um direito político-liberal. Não à toa que esteve fixada na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. 

O princípio da legalidade é, inequivocamente, obse ao ius puniendi estatal. O direito penal é subsidiário, ultima ratio; exceção, não regra. A conduta de andar, são, em vias públicas, de modo algum figura crime. Ao contrário, é a mais pura e autêntica expressão do direito petreamente garantido.  Sequer há conduta apta a produzir o resultado, como poderia haver crime?

Os decretos são vazios de legitimidade e representam uma duríssima afronta à lógica normativa da nossa República. Enquanto produzirem efeitos, serão “elefantes brancos” inseridos no nosso ordenamento jurídico. 

O problema central é compreender que tudo gira em torno de duas formas de enxergar o direito: De um lado, aqueles que pensam que o direito deve ser aplicado tal como está posto. Do outro, aqueles que pensam que devemos “moralizar” o direito. Eis o dilema: aplicar ou moralizar a lei? 

Aqui cabe um elogio ao professor Lenio Streck. Streck foi pioneiro ao criticar a abordagem (pretensamente) descritiva do positivismo jurídico a partir de um standard hermenêutico. Uma de suas críticas é elaborada a partir das considerações de Alasdair MacIntyre, e essa crítica é mais facilmente compreendida se seguirmos Lon Fuller e tomarmos o Direito como um conceito funcional. 

Está é a grande discussão! A ilegalidade dos decretos municipais e estaduais são incontestáveis do ponto de vista intuitivo, mas complexos do ponto de vista hermenêutico. A prisão por decreto não passa de uma mera singularidade acidental em meio ao emaranhado teórico que orbita em torno do problema de que o direito é um conceito funcional.

Antes, discutimos se deveríamos aplicar a literalidade da lei acerca da presunção de inocência e a prisão em segunda instância; hoje, se o princípio da legalidade deve ser interpretado em sua literalidade. Sempre foi um problema hermenêutico, sempre foi um problema de fundamentação do direito!

O Thomas Hobbes nos ensina que há uma linha bastante tênue entre a sociedade civil e o estado de natureza. Me pergunto até quando o povo se manterá dócil, vulnerável a toda sorte de punições arbitrárias daqueles que, em termos democráticos, os representam. Penso que, agora mais que nunca, a máxima do Georges Ripert faz sentido: “Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito.” 

De todo modo, permanece perpétua a máxima do nosso Águia de Haia:

A força do direito deve superar o direito da força.

Agora, mais que mera sentença, é mandamento.


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