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A Mutilação do EU: descartando a identidade


Por Iverson Kech Ferreira


Bem antes do nascimento o pequeno embrião já é batizado por seu nome. Muitas vezes, listas de nomes são produzidas pelos ansiosos pais, que escolhem aquela única palavra que definirá eternamente a pessoalidade e a distinção. O filho(a) possui, dessa forma, uma identificação, uma maneira de chamamento próprio mesmo anterior ao seu nascimento.

O nome é a essência primordial do reconhecimento da pessoa e a partir dele passa a formar-se uma identificação, um prestigio próprio, a imortalização do ser. Não são apenas meras palavras, é o nome, o sobrenome. Aquele som acompanhará o individuo para sempre, que, ao ouvi-lo, saberá que se trata de assunto relacionado a seu interesse particular. O nome é a identificação que o sujeito possui, inicialmente, entre tantos outros espalhados pelas sociedades. É o seu cartão de visitas e sua maneira de individualização.

Entretanto, inúmeras são as propensas formas, em algumas instituições, de tornar o nome pessoal uma identidade que inicia a ser deteriorada pelas burocráticas fórmulas de identificação, que personificam o sujeito considerando um modelo pragmático em detrimento do chamamento pessoal. É comum nas instituições de ensino o número de chamada identificar um estudante e não o seu nome. Normal nas empresas a numeração do crachá enumerar todos os envolvidos em uma atividade qualquer, mas não o nome.

A identidade da pessoa, e aqui trata-se apenas do nome e suas causas, não é objetivo adentrar estudos da identidade deteriorada ou do estigma e rotulação, assuntos esses tratados em artigos anteriores, mas sim debruçar nosso pensamento no chamamento, no nome, que de todas as distinções é aquela elementar do humano, aquela que identifica o indivíduo, a que dá as bases para as suas crenças individuais de aceitamento próprio, de confiança, de ser individualizado como EU em meio a uma multidão de desconhecidos no cerne das sociedades. É interessante analisar as formas quais essa afirmação pessoal é mascarada e atacada pelas instituições, que possuem mecanismos para afirmar a redução da pessoa e de sua dignidade, uma vez que o nome como chamamento próprio da pessoa e de sua identificação dignifica o homem e toda a sua existência. Afinal, quem não gosta de ter seu nome lembrado ou ser chamado pelo primeiro nome, seja em salas de aulas ou em ambiente de trabalho?

Começa pelas salas de aula, quando em chamada para conferência da presença dos estudantes, em início de sua longa jornada discente, um número é posto no lugar de seu nome, e assim, o número 24 não significa mais duas dezenas somadas ao algarismo quatro, mas sim, o epiteto do aluno. Desde o inicio do ano, desde suas primordiais passadas em uma instituição de ensino ortodoxa e tradicional, a identidade começa a ser desconstruída e forjada a uma identificação que não a real. Essa forja que inibe a pessoa e seu nome tende a aumentar com o passar dos tempos em vida na sociedade. Nos serviços e trabalhos os números estão presentes alterando o nome mais uma vez por um chamado que não diz nada ao trabalhador, pois é apenas um número. Ao identificar-se com o número, este passa a ser o número. GOFFMAN, ao tratar especificamente do nome, diz que

“(…) Talvez a mais significativa dessas posses não seja física, pois é o nosso nome; qualquer que seja a maneira de ser chamado, a perda de nosso nome é uma grande mutilação do eu”.

Uma vez que o sistema seleciona, seja nas escolas, trabalhos, serviços ou outros, o individuo passa a fazer parte como se uma posse do próprio sistema fosse, como se um aparelho de engrenagem da maquinaria se tornasse.

Interessante são os exemplos que podemos usar para ilustrar, bem como os alunos de uma chamada onde o nome nada importa, como na literatura, na obra Os Miseráveis de Victor Hugo, por exemplo, o nome Jean Valjean fora aniquilado e em seu lugar posto o 24601, seu número de prisioneiro, sua marca registrada, da qual advém sua real identidade. O prisioneiro passa então a ser reconhecido como coisa, como expurgado da sociedade desde suas entranhas e sua história passa a ser apagada da existência, adquirida pelo sistema da qual agora deve esforçar-se para fazer parte, para sobreviver.

O número aniquila o nome, a identidade vai se perdendo pela vontade do sistema que forja, numa natural seletividade humana, aqueles que devem ser compreendidos como homens e como números. Para Goffman, não se aniquila apenas o próprio reconhecimento e auto preservação, mas a negação parte também da sociedade ao redor para com o individuo rotulado por um chamamento e não por seu nome real. Passa então a ser mais um no rebanho entre tantos outros, passa a ser mais um no longo corredor estreito que leva às galés ou ao corredor da morte, mais um numerado, pois é muito mais conveniente descartar os números aos nomes. Segundo Foucault, isso é teorizado bem antes da entrada do individuo no sistema, é assim que se mantem uma vigia constante e que menospreza o ser em seu aparato individual, em sua síntese e em sua liberdade de ser.

Para Kant o indivíduo deve ser levado em consideração como um fim em si mesmo, mas nunca como meios para que uma finalidade seja alcançada. Dessa forma, entender o significado das peculiaridades individuais como a motivação, a rotina e acima de tudo a identidade, é considerar o homem como um fim em si mesmo, dotado de prerrogativas inatas à sua dignidade e existência. Considerar a mudança ou troca de nome por um chamamento que não o nome é negar a particularidade e a individualização deste frente ao universo de pessoas que convivem em uma sociedade. Todavia, fazer isso em nossa realidade significa o inicio de uma rotulação que não se dissolve, mas toma corpo com o passar do tempo. Esse estigma ganha peso a partir da perda da primeira identidade e é realizado por instituições que trazem em seu cerne a tradicionalidade do passado, mas também por uma distinção entre classes e pessoas, entre o rotulável e o não rotulável.

Interessante como em escolas de comunidades carentes o número distingue o nome do aluno desde seu primeiro passo, excomungando a apreciação de seu nome, que de fato, significa respeito. Nas empresas ao substituir o nome por número significa a “descartabilidade” da pessoa humana, que não enxerga demonstração de empatia nem de que ao menos dentro da fábrica, alguém do alto escalão o conhece. Nota-se que essa rotulação em fase inicial ainda, prega uma negação do ser e de sua afirmação como pessoa.

Céticos dirão que um número não pode influenciar tanto assim, todavia, a origem da criminalização, muitas vezes, é o número de um artigo. Muitas vezes a origem da distinção entre um e outro é o nome já dito algumas vezes em meio social em detrimento do outro que sempre fora um número. Existem diferenças palpáveis e verificáveis nos estudos da identidade inicial.

Em um tribunal do júri, em casos de crimes dolosos contra a vida, onde o que se trata é de fato o bem mais importante do ser humano, a vítima sempre é conhecida por seu nome, ou por quem seu nome representou. Imaginar o advogado de defesa em sua plenitude de defesa, averbando, defendendo, se dirigindo aos jurados em prol de sua tese seja ela qual for, citando o seu criminado como “acusado” ou “réu” ou até mesmo “denunciado” é algo escabroso. Diante de todos o acusado possui seu nome, que é o respeito que lhe é dado por seu defensor, todavia, é a sua presença individual, é seu EU constante, não um número, não um epiteto, não um chamamento pejorativo e depreciativo, mas seu nome ao invés da alcunha que o sistema quer e deseja.

Na medida em que se aliena o homem de seu nome ele também está alienado àquela identificação primordial que estabelece os seus vínculos com a sociedade, negando também sua presença e as suas possibilidades. A construção da imagem é deveras essencial nos dias onde ninguém conhece ninguém nas cidades e nos grandes centros, o nome faz a diferença quando ser alguém é mais do que invidualizar características, mas também, buscar pela dignidade de sua sobrevivência.

A partir da negação da identidade a porta se abre a um caminho influenciável e perspectivas também de negação passam a ser exteriorizadas.

Um conflito de negação em um adolescente de classe baixa, suburbano, morador de comunidades carentes, que não possui nem ao menos seu nome, pode vir a ser o inicio de uma nova identidade, aquela que se cria em virtude da qual foi negada. E esse caminho pode levar a outra rejeição muito mais abrangente: o desprezo pela sociedade e a recusa de viver nela, a negação de todo um sistema que o rotula instantaneamente ao adentrar a escola, ao entrar nos serviços, ao negar o seu nome.

As técnicas de neutralização de Matza tem um significado circunstancial aqui. Os mecanismos de defesa contra a culpa da prática de um crime partem também da negação do EU enquanto vivente da mesma sociedade. Ao praticar furtos ou roubos que satisfaçam o sentido hedonista do jovem de classe baixa, esse nega, como forma de desculpar-se ou conferir o dolo a outrem, praticando em si o discurso de que a “vítima mereceu, pelo fato de ter demais e ele de menos, pois não vai fazer falta, ou, por que você me nega, dessa forma, merece ser roubada, pois eu também, da mesma maneira te nego!”

A rotulação começa com a simples mudança do nome, que significa a não aceitação por parte do sistema do indivíduo que se apresenta. Negar o inicio desse ciclo seria imperioso para que se possa aceitar a ampla cidadania que carece a sociedade, e nesse interim, reforçar nossas bases e empatia e aceitação pelo outro que se posta a frente, ou melhor, tenta se inserir no conjunto da sociedade.

Ainda, existem os que minimizam o fato do nome em si e que é utópico pensar que o chamamento não influi nem interfere na identidade humana e sua identificação. Certamente lograram e não fizeram parte dos institutos que utilizam dessa técnica para iniciar uma constante e evolutiva rotulação e por isso negam que a atribuição de um apelido como número seja deterioradora da identidade. Por certo, as pesquisas apontam ao contrário.


REFERÊNCIAS

BERGER, Peter L. Luckmann T. A construção social da realidade. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

GOFFMAN, Erwing. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

Iverson

Iverson Kech Ferreira

Mestre em Direito. Professor. Advogado.

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