A natureza da qualificadora do feminicídio
Por Rafhaella Cardoso e Rafaela Vieira de Medeiros
O presente ensaio objetiva investigar a natureza jurídica da nova qualificadora do delito de homicídio no Código Penal Brasileiro, denominada de “feminicídio” e suas consequências na quesitação pelo Tribunal do Júri, como, por exemplo, se é possível coexistir a qualificadora com circunstâncias minorantes, tal como, o “feminicídio privilegiado”. Importante se faz, neste estudo, destacar o que representou a inserção legislativa do “feminicídio”, feita pela Lei 13.104 de 2015. A metodologia utilizada, para tanto, consistiu no levantamento de fontes teóricas e documentais sobre direito penal e violência doméstica e de gênero e a pesquisa foi, em grande parte, dedutiva, de análise textual-analítica..
Com a finalidade de prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher foi necessário, por parte do legislador, a criação da lei 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha). A Constituição Federal de modo enfático consagra o principio da igualdade e explicitamente, ressalta a igualdade entre homens e mulheres, inclusive no âmbito das relações familiares (artigo 226 § 5º da Constituição Federal). Do mesmo modo, impõe ao estado o dever de assegurar assistência à família e criar mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações(MONTENEGRO, 2015).
O conceito de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher surgiu com a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará. Invocado na ementa da Lei Maria da Penha, define Violência contra a Mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico. Esta definição serviu para auxiliar o legislador na criação de mecanismos para reprimir a violência doméstica e familiar contra a mulher. (DIAS, 2015, p.48).
Na Lei Maria da Penha, está inserida o campo de abrangência, ou seja, a unidade doméstica, definida no art.5º. I: espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas. A expressão “unidade doméstica” deve ser entendida como conduta praticada em razão dessa unidade da qual a vítima faz parte. (DIAS, 2015, p.51).
O legislador, objetivando mais rigor na proteção da mulher no âmbito familiar criou a lei 13.104, de 2015, que alterou o artigo 121 do Código Penal Brasileiro, decreto – lei 2.848, de 1940, com a finalidade de prever o Feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio. Além de qualificar o homicídio contra mulheres a lei 13.104 também alterou a lei 8.072, de 1990, ao incluir o Feminicídio no rol dos crimes hediondos. Além disso, tratando- se de crime doloso contra vida, a competência é do tribunal do Júri (art. 5º inciso XXXVIII, alínea “d” da Constituição Federal), regra que se aplica ao julgamento. Não há vedação à colheita de provas perante a vara de violência contra a mulher e a redistribuição do feito após o trânsito em julgado da pronúncia, nas comarcas em que haja varas específicas de violência contra a mulher.
O presente ensaio, portanto, pretende abrir o questionamento da existência ou não de “Feminicídio Privilegiado” (art. 121, §§ 1º e 2º, VI, c/c §2º-A, I do CP) e assim analisar as consequências da qualificadora do Feminicídio na quesitação do Tribunal do Júri, se a natureza da qualificadora será de ordem subjetiva ou objetiva, possibilitando ou não cumular com a minorante prevista no parágrafo primeiro do dispositivo em comento.
Segundo Amom Albernaz Pires, a qualificadora do Feminicídio tem natureza objetiva. Embora a disposição remeta à noção de motivação (“em razão da condição de sexo feminino”), as definições incorporadas pela Lei Maria da Penha sinalizam contexto de violência de gênero, ou seja, quadro fático-objetivo não atrelado, aprioristicamente, aos motivos determinantes da execução do ilícito. (PIRES, 2015, s/p).
Para o autor, a nova qualificadora do Feminicídio não constitui o móvel imediato da conduta, isto é, o agente pode ter agido por causa de uma discussão banal com a vítima (motivo fútil) ou por força de sentimento de posse em relação à ofendida, reforçado pelo seu inconformismo com o término do relacionamento afetivo (motivo torpe). (PIRES, 2015). No mesmo sentido, ao comentar a redação do art. 121, § 1º, inciso I do Projeto de Lei nº 236/12 (Novo Código Penal), que traz como qualificadora do homicídio o contexto de violência doméstica ou familiar. Neste mesmo sentido, Busato se posiciona no sentido de se tratar de dado absolutamente objetivo, equivocadamente inserido em disposição que cuida de circunstâncias de natureza subjetiva. (2013, s/p).
A partir dessas premissas, lança-se observação acerca do motivo imediato, que pode qualificar o crime se aderente às hipóteses do art. 121, § 2º, incisos I, II e V do Código Penal, quadro que não se confunde com a condição de fato, ou seja, com o contexto objetivo, caracterizador do cenário legal de violência de gênero, palco em que se desenvolveram os ataques contra a mulher dramaticamente encerrados com a sua morte. Acolhidos esses argumentos, conclui-se pela possibilidade de Feminicídio privilegiado diante da compatibilidade das qualificadoras objetivas com o benefício previsto no art. 121, § 1º do Código Penal. Neste aspecto, portanto, ainda que o Conselho de Sentença reconheça a incidência de uma das causas minorantes do § 1º do art. 121 do Código Penal, deverá o Magistrado quesitar a qualificadora do inciso VI do § 2º c.c. § 2º-A, inciso I, todos do Código Penal. Quando a qualificadora do Feminicídio incidir, restará prejudicada a incidência da agravante genérica do art. 61, II, f, parte final, do Código Penal, sob pena de bis in idem vedado pelo art. 61, caput, do CP.
Por fim, vale destacar que, no caso de o homicídio privilegiado (CP, art. 121, § 1º) ser reconhecido pelos jurados (4º quesito), restará prejudicada a votação do quesito da qualificadora subjetiva possivelmente imputada na pronúncia (motivo fútil ou torpe), porém a votação seguirá quanto às qualificadoras objetivas (incisos III, IV e VI do § 2º do art. 121 do CP), inclusive quanto à qualificadora do Feminicídio, tal qualificadora é perfeitamente compatível com a incidência do privilégio, quando teríamos um homicídio privilegiado-qualificado. Entendimento oposto, ou seja, entender que o acolhimento do privilégio é incompatível com a qualificadora do Feminicídio, ao fundamento de que esta teria natureza subjetiva. (PIRES, 2015, s/p).
Em contrapartida, os autores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini (2015), defendem que a qualificadora do Feminicídio é notadamente subjetiva. Embora seja possível a coincidência das circunstâncias privilegiadoras dispostas no § 1º do art. 121 (todas de ordem subjetiva), com qualificadoras de natureza objetiva (§ 2º, III e IV), quando é reconhecido o privilégio pelo conselho de sentença no tribunal do júri, fica afastado imediatamente a tese do Feminicídio. Segundo os mesmos autores não se pode pensar num Feminicídio, que é algo reprovável à dignidade da mulher, que tenha sido praticado por motivo de relevante valor moral ou social ou logo após injusta provocação da vítima. Contudo, seguindo a tese dos autores, a natureza da qualificadora do Feminicídio trata-se de ordem subjetiva, pois a violência de gênero não é uma forma de execução do crime e sim sua razão ou seu motivo. A qualificadora seria de ordem objetiva se dissesse respeito ao modo ou meio de execução do crime.
Recentemente, o Ministério Público de Ceilândia no Distrito Federal, ofereceu acusação por homicídio qualificado por Feminicídio e motivo torpe (artigo 121, parágrafo 2º, I, do Código Penal). Segundo o entendimento do juiz do Tribunal do Júri apenas a qualificadora de motivo torpe se aplicava ao caso.
Com entendimento divergente, o Ministério Público interpôs recurso contra a decisão de pronúncia ao entender que tanto a qualificadora do Feminicídio quanto o motivo torpe se integram perfeitamente, pois a natureza de cada uma é diversa (a torpeza correlaciona-se à motivação de oportunidade da ação homicida, e o Feminicídio se dará diante de um estado típico de agressão de homem contra mulher no contexto de violência doméstica e familiar).
Diante desta situação, a 1º Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal decidiu por unanimidade ao provimento do recurso do Ministério Público, entendendo que não há conflito entre as qualificadoras do crime de Feminicídio e motivo torpe (veja aqui).
Em síntese, ao longo desta pesquisa, posiciona-se que a natureza da qualificadora do Feminicídio é de ordem subjetiva. Assim como sustentado por alguns autores, defende-se aqui que a violência de gênero não é uma forma de execução do crime, mas sim sua razão ou seu motivo e jamais poderia subsistir com a minorante especial do relevante valor moral ou social, ou sequer ser justificada pela ação ter sido decorrente de violenta emoção provocada pela vítima, salvo se comprovadamente injusta, sob pena da perda do objeto de proteção da questão de gênero advinda da Lei 11.340/2006. Consequentemente, quando é reconhecido o privilégio pelo conselho de sentença no Tribunal do Júri, fica afastada imediatamente a tese de Feminicídio, embora seja possível a coincidência das circunstâncias privilegiadoras dispostas no § 1º do art. 121 (todas de ordem subjetiva), com qualificadoras de natureza objetiva (§ 2º, III e IV).
REFERÊNCIAS
BUSATO, Paulo César. Homicídio mercenário e causas especiais de diminuição de pena: paradoxo dogmático. 2013. Disponível aqui.
DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha: A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2015.
GOMES, Luís Flavio. Que se entende por femicídio? 2015. Disponível aqui.
______; BIANCHINI, Alice. Feminicídio: entenda as questões controvertidas da Lei 13.104/2015. 2015. Disponível aqui.
MONTENEGRO, Marilia. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan. 2015.
PIRES, Amom Albernaz. A natureza objetiva da qualificadora do feminicídio e sua quesitação no Tribunal do Júri. 2015. Disponível aqui.