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A necropolítica brasileira escancarada a partir do COVID-19

A necropolítica brasileira escancarada a partir do COVID-19

A Organização Mundial da Saúde recomenda o isolamento social para frear a disseminação do vírus Covid-19, o corona vírus. A medida foi aderida por muitos países, com exceção de alguns poucos, e pelo Brasil igualmente acolhida a orientação, ao menos formalmente.

Contudo, por detrás da forma, alguns dos agentes políticos do mais alto escalão do Poder Executivo se manifestam abertamente contra a recomendação da OMS, impulsionando o contato de multidões e as aglomerações de pessoas, ignorando fatores de risco significativos. Isto é, embora formalmente o Estado busque mitigar os efeitos da doença, materialmente o que se percebe é diametralmente oposto.

Quatro dessas manifestações de ideias chamam especial atenção por evidenciar a necropolítica brasileira, que uma a uma serão abordadas nesse texto.

A primeira delas, de autoria do presidente da República, consiste em uma declaração fomentando as manifestações, em todos o país, ocorridas no dia 15/03/2020, contrárias ao STF e ao Congresso Nacional, instituições basilares do Estado Democrático de Direitos que ainda vige no país, embora muitos manifestantes se voltassem contra ao que lhes permitiu ir às ruas manifestar.

As manifestações ocorreram e a aglomeração de pessoas em várias localidades foi significativa, em conflito com as orientações da OMS.

Recentemente se manifestou, o mesmo agente político, contrário à suspensão dos cultos, missas e encontros religiosos, fundamentando sua opinião na Constituição Federal, que garante a liberdade religiosa e assegura o livre exercício dos cultos religiosos (inc. VI, art. 5º, CF/88). Milhoranse (2020), nesse mesmo veículo já anisou o impacto do Covid-19 na liberdade religiosa.

A ação demonstra, mais uma vez, que se utiliza como retórica as garantias constitucionais a fim de conformar ideais e pensamentos próprios, ou seja, ora se utiliza da Constituição Federal para defender interesse próprio ou de seus eleitores, ora ignora outros preceitos e garantias constitucionais, em especial a dignidade da pessoa humana e a vida quando a valoração dessa garantia conflita com interesses políticos.

Espantosamente as declarações posteriores pioraram. Ontem (24/03/2020) o Presidente da República voltou a declarar que as políticas de isolamento são desnecessárias, afirmando que as pessoas devem voltar ao trabalho e as crianças às escolas. Em outras palavras, a criação no imaginário do chefe do executivo de que o cenário atual não demanda políticas públicas de contenção e isolamento faz com que mais e mais pessoas se juntem em espaços pequenos, tenham contato umas com as outras, conferindo meio fértil para que a pandemia se alastre em velocidade altíssima.

Aqui surge o quarto posicionamento, consistente na declaração do Ministro da Justiça de que “não podemos soltar presos e pôr em risco população”, ponto de análise mais detalhada desse artigo. A medida material de genocídio da população prisional adota como método a inércia dos Poderes, enquanto se trata de um dever objetivo da ação do poder público. A respeito disso, já se decidiu que nem mesmo a reserva do possível pode ser suscitada para imiscuir o Estado de agir quando o assunto é o sistema penitenciário (RE 592.581).

A superpopulação prisional no Brasil é estrutural e sistêmica (ROIG, 2018, p. 583), que atualmente opera com um déficit de mais de 310mil vagas (dados desatualizados do Infopen de junho de 2019 – os números reais são muito maiores). Isso equivale a aproximadamente 70% das vagas disponíveis no sistema prisional brasileiro, dados esses impulsionados pela locomotiva que é o Estado de São Paulo, que supera todos os demais Estados quando o assunto é encarcerar – e encarcerar mal.

Não bastasse o déficit prisional, as unidades prisionais são insalubres, mal iluminadas (ROEHRIG e DE FARIA, 2020), com pouca ventilação, húmidas, quentes etc., características férteis para a proliferação do vírus e de doenças. Um infectado lá dentro, certamente contaminará todos os outros, sobretudo diante da fácil transmissão do vírus. E não há como isolar esse indivíduo, porque não há vagas sobressalentes. Não há unidade de terapia dentro das unidades prisionais. Não há tratamento médico, e quanto existente, insuficiente.

Embora grande parte das pessoas presas sejam jovens, fora, portanto, do grupo de risco de morte da doença, não há como ignorar o fato de muitos, embora jovens, já terem contraído outras doenças, em especial o HIV e a tuberculose, tão comum no sistema carcerária e tão negligenciada por todos os poderes. Esses fatores são impulsionadores aos resultados mortais do Covid-19.

O Estado, sobretudo seus agentes principais, tem fomentado o ódio e, dentre muitos métodos, pela mortalidade aos indesejáveis, esses concentrados nos presídios. Não há outro grupo de inimigos do Estado que seja tão facilmente selecionado, isolado e exterminado quanto o dos presidiários. A declaração do Ministro da Justiça, de que os presos não poderão sair, isto é, de que não haverá política pública para essas pessoas inseridas dentro dos fatores de risco, deixa ainda mais em evidência que a política de controle estatal é a morte.

Pegar tuberculose na cadeia faz chorar

Aqui a lei dá exemplo: mais um preto pra matar

(CRIOLO, Boca de Lobo, 2018).

Foucault (2014, p. 190) apresentou um regulamento do fim do século XVII, vigente quando se declarava a peste numa cidade, segundo o qual permitia, aos síndicos, intendentes e soltados da guarda, matar qualquer um que desrespeitasse a medida de quarentena determinada. No caso apurado neste texto a política de morte ainda está presente, apesar dos anos que se passaram. Presente na omissão do Estado que deixa para adoecer e morrer um grupo de vulneráveis estigmatizado.

O Min. Marco Aurélio, sensível à situação, concedeu tutela provisória incidental na ADPF/347, determinando a adoção de algumas medidas pelos juízes para minimizar os danos e tentar evitar a propagação da pandemia no sistema carcerário, contudo, a medida não foi referendada pelo plenário do STF por questões formais. O CNJ, por sua vez, editou algumas com o mesmo fim, inseridas na Recomendação 62, de 17 de março de 2020.

Por mais que adotadas as medidas orientadas pelo Poder Judiciário, o estado de coisas inconstitucional reconhecido na ADPF 347 não será desconstituído. Aliás, faz-nos lembrar, por ocasião do julgamento da ADPF, da suscitada remição pela indignidade penitencial pelo Min. Luís Roberto Barroso, o qual pretendia impor como medida a remição da pena aos presos em unidades prisionais cujas condições estruturais e de vida sejam reconhecidamente declaradas indignas (AMARAL, 2016).

Diante desse quadro, necessário pensar no princípio numerus clausus na Execução Penal, este compreendido, muito suscintamente, pela delimitação de um número de vagas conformando a real capacidade das unidades prisionais. Mas não só, uma entrada no sistema prisional deve corresponder obrigatoriamente a uma saída (ROIG, 2014).

A adoção desse princípio como regra não encerrará com as notícias de doenças no sistema carcerário, mas certamente mitigará os danos ao grupo de vulneráveis que são as pessoas presas. Afinal:

Estamos falando de vidas! Vamos correr o risco de deixar pessoas morrerem por falta de coragem? A humanidade chegou a um ponto de inflexão, ou assumimos nossa civilidade, ou seremos condenados pela história. Isso se restar alguém para contar. A hora é essa (BUCH, 2020).


REFERÊNCIAS

AMARAL, Luiz Renê G. do. A remição da pena privativa de liberdade pela indignidade penitencial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 23, n. 278, p. 14-16., jan. 2016.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

MILHORANSE, Luan. O impacto do COVID-19 na liberdade religiosa. Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível aqui.

ROEHRIG, José Flávio Ferrari; de FARIA, Cíntia. A culpa deve ser do sol. Canal de Ciências Criminais, 2020. Disponível aqui.

ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Um princípio para a execução penal: numerus clausus. Revista Liberdades, São Paulo, n. 15, p. 104-120., jan./abr. 2014.


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