A pandemia da COVID-19, as condutas criminosas e os novos criminosos
Paulo Fernando Pinheiro e Elisa Stroberg Schultz
O mundo está passando pelo que, cremos, será chamado do maior pesadelo do século, resultante de uma grande crise humanitária. Quem diria que, por causa de uma “gripezinha” (é o que dizem alguns dos nossos governantes) a população ficaria apavorada e apreensiva pelas incertezas não apenas do contagiosa da doença, mas pelo futuro da humanidade pós Covid-19.
(Alguns infectologistas dizem que após a pandemia, o planeta não será o mesmo, pois surgirão novas ameaças causadas por agentes patogênicos. Segundo a Organização Mundial da Saúde – OMS, o nome oficial da doença causada pelo coronavírus não se refere a nenhuma localidade geográfica por questões estigmatizastes. Assim, a palavra é composta por “corona” “vírus” “doença” e o no de 2019)
Dormimos em um mundo e acordamos em outro. Pânico, máscaras, higienização do corpo e residência passaram a fazer parte do nosso cotidiano. O home office virou regra e o isolamento social uma virtude, pois a interação interpessoal leva ao risco do contágio.
E nesse contexto neoliberal ou, como dia o Prof. Rubens Casara, pós democrático, a presença do Estado está sendo invocada inclusive por quem sempre defendeu o Estado mínimo, para atuação na área da economia, proteção ao trabalho, segurança pública e, dado o contexto, saúde pública.
A atuação do Estado para promover a saúde pública consistiu em editar decretos de isolamento social e suspensão de atividade do comércio consideradas como não essenciais, em razão de causarem aglomerações e, consequentemente, promover o contágio pelo vírus da Covid-19.
Na prática, nem todos os serviços essenciais de fato o são, como os serviços de serviços de manutenção, assistência e comercialização de peças de veículo automotor terrestre, pois o grande número lojas de autopeças (inclusive próximas umas das outras em algumas cidades) promove as aglomerações e se afasta da finalidade das determinações do poder público de combater a disseminação e o contágio da doença.
A Covid-19 (coronavírus) é uma ameaça real, tanto que a Organização Mundial da Saúde – OMS se manifestou sobre o seu alto poder contagiante.
Com a promoção da reabertura do comércio e minimização das consequência do contágio feita por membros do poder público, o cenário que se cria é o surgimento de uma novo perfil de criminosos, que são as pessoas que insistem em descumprir as medidas preventivas estipuladas pelo poder público com finalidade de evitar a pandemia em solo nacional.
Contextualizando a Covid-19 nas ciências criminais
No Brasil a saúde pública é prevista como direito social – direito fundamental de segunda geração, no art. 6º., da Constituição da República, que dispõe sobre um capítulo próprio para a proteção à saúde nos arts. 196 usque 200.
Esse dever do Estado decorre da nossa relação jurídica com ele. Primeiramente cumpre lembrar que o Estado Democrático de Direito brasileiro é um outorgado nosso. Pelo menos é que o que podemos concluir da leitura do art. 1º, parágrafo único, da Constituição da República, em que se afirma que “todo poder emana do povo”. (sic)
Em segundo lugar, como toda relação jurídica, a nossa relação com o Estado tem algumas consequências. São elas: ônus, deveres, direitos, sujeições, faculdades e obrigações.
Nesta relação jurídica, decorrente dessas consequências, em uma democracia em que o poder é do povo que o outorga ao Estado, nós nos tornamos credores e o Estado é colocado em uma situação de devedor. Somos credores de educação, de habitação, de proteção ao trabalho, de jurisdição e, mais do que nunca, somos credores de saúde pública.
Destarte, diante do contexto da pandemia da Covid-19, o Estado tem que tomar determinadas medidas para que a saúde coletiva não seja colocada em risco.
Uma das formas de proteção da saúde pública adotadas pelo Estado Brasileiro foi elegê-la como um dos bens jurídicos mais importantes para o ser humano, colocando-a no patamar de bem jurídico tutelado pelo direito penal.
O Capítulo III, do Título VIII, do Código Penal tutela a saúde pública em âmbito penal, dispondo sobre os crimes contra a saúde pública, dentro da incolumidade pública.
Geralmente são tipos penais que não são muito aprofundados nas aulas de direito penal na graduação, mas diante do contexto da pandemia, nada melhor do que refletir sobre algumas condutas que podem prejudicar o bem jurídico penal em tela.
Elegemos quatro situações e dois crimes para tal reflexão. Duas das situações ocorreram no estado no Paraná e as outras duas no Estado do Rio Grande do Sul.
Foi noticiado pelos jornais do Paraná que um casal, morador da cidade de Araucária, no Paraná, foi preso na madrugada do dia 23 de março após dar uma festa para 30 pessoas, desrespeitando o Decreto nº. 4.317, de 21/03/2020, que dispõe sobre as medidas para a iniciativa privada acerca do enfrentamento da emergência de saúde pública de importância decorrente da COVID-19.
No mesmo Estado, na cidade de Foz do Iguaçu, no dia 23 de março, uma mulher que sabia que estava com suspeita de ter contraído o vírus Covid-19, teria ido ao trabalho e a uma festa com mais de 200 pessoas, segundo noticiado em vários canais de comunicação.
No rio Grande do Sul, na cidade de Torres, um surfista foi preso pela brigada militar no dia 22 de março após desobedecer a determinação do poder público e ir à praia, segundo o jornal GaúchaZH.
E na mesma cidade (Torres – RS), no mesmo dia, a justiça determinou a prisão domiciliar de um jovem que atestou positivo para o vírus Covid-19, que teria ironizado tal fato nas redes sociais e frequentou uma festa com mais de 300 pessoas segundo o mesmo tabloide.
Pensamos que é perfeitamente possível ter havido ou ainda haver muitos casos com estes quatro acima noticiados.
Pois bem, por mais que ninguém possa alegar que desconhece o direito, (segundo a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro – LINDB, art. 3º), no caso o direito penal, na prática é perfeitamente possível essa alegação a partir da opacidade do direito. Porém, alegar que desconhecia a determinação do poder público e o contexto pandêmico do vírus Covid-19 já nos parece uma desrespeito à saúde e pública.
Do ponto de vista criminal, os quatro casos relatados acima podem ser caracterizados como crime, com a subsunção do fato à norma penal, especialmente os tipos previstos nos arts. 267 e 268, do Código Penal: os crimes de epidemia e infração de medida sanitária preventiva, respectivamente.
Ambos os delitos estão previstos no título que protege a incolumidade pública e no capítulo que protege a saúde pública.
O crime de epidemia tem como objetividade jurídica a saúde pública, crime comum, material e de perigo concreto, punido a título de dolo direto ou eventual (caput) ou culpa (§2º). E como comum, qualquer pessoa pode dar causa ao surto de uma doença acidental e transitória, que vai atacar muitas pessoas numa mesma localidade e época, contaminadas por germes patogênicos (vírus, bacilos, protozoários e algumas espécies de bactérias), prejudiciais. No caso do Covid-10, trata-se de um vírus.
Pune-se mesmo quem não tem a intenção e nem assume o risco de causar a epidemia, mas acaba o fazendo de forma culposa, por imperícia, imprudência ou negligência e a pena chega a dobrar se ocorrer a morte das vítimas.
A seu turno o crime definido no art. 268, do Código Penal, tutela a incolumidade pública. A conduta é relativamente menos gravosa do que a epidemia, inclusive com pena de detenção de um mês a um ano e multa.
Trata-se de uma norma penal em branco, vez que o art. 268, do CP não dispõe sobre o conteúdo da determinação do poder público e é este quem deve complementar, por meio de outro ato normativo (ato do poder executivo ou lei ordinária), o tipo penal em questão.
Esse ato normativo deve determinar expressamente as medidas preventivas que vão evitar a instauração e propagação das doenças contagiosas. Aliás, esse ato normativo deve conter um “determinação”, que é elemento normativo do tipo, e não uma mera orientação ou recomendação, como foi o caso da atuação no nosso Ministério da Saúde em 2009, na epidemia de Influenza – H1N1.
Logo, se alguém descumprir, violar, transgredir uma determinação do poder público que venha a complementar o delito do art. 268, está incidindo na conduta deste artigo do CP.
O delito é comum, porém de perigo abstrato. E aqui reside uma peculiaridade: a lei, de forma absoluta (juris et de jure), presume que o descumprimento da determinação gera perigo para toda a coletividade.
Ou seja, o simples descumprimento da determinação do poder público consuma o delito.
Outrossim, se o agente for profissional de saúde previsto no §2º, doa art. 268, incide uma causa especial de aumento de pena, que é o percentual de aumento de um terço.
Pois bem, a breve análise destes dois tipos penais se mostra mister em razão e que estão surgindo nas redes sociais vária manifestações para o descumprimento das determinações do poder público de alguns estados e municípios, em razão do lucro e do retorno das atividades do comércio.
Considerações finais
Por mais que o livre comércio e a liberdade de ir e vir sejam, deveres cívicos e direitos fundamentais, em razão do contexto da pandemia da Covid-19 nos parece razoável que tais direitos sejam limitados, pois cabe ao Estado assegurar a saúde coletiva e, assim, todos os direitos fundamentais de todos os brasileiros natos, naturalizados e estrangeiros aqui residentes, pessoas físicas e também jurídicas.
Porém, o descumprimento das determinações, seja de forma individuais por passeatas, carreatas e outras formas de aglomerações que, em nome do lucro e do livre comércio, pedem o fim da limitações impostas pelo poder público, do ponto de vista criminológico, traça o perfil dos novos criminosos.
São pessoas que não moram na periferia, que não usam transporte coletivo, que possuem plano de saúde e, portanto, não dependem do Sistema Único de Saúde – SUS (as últimas pesquisas relatar que 77% dos brasileiros não possuem planos de saúde e dependem do SUS). Prezam pela reabertura do comércio priorizando o lucro sobre a saúde ou a vida. Isso pode ter um custo altíssimo: a contaminação e morte de várias pessoas no Brasil.
Aliás, o próprio Ministro da Saúde, em entrevista coletiva, afirmou que a elite econômica do nosso país foi responsável por trazer o vírus da Covid-19 (pois a classe pobre dificilmente viaja a trabalho ou férias para outros países).
Pela teoria do labeling approach da criminologia, essas “pessoas de bem”, que geram empregos, que não dependem do Estado, que descumprem as determinações preventivas contra a Coivd-19, fazem manifestações nas ruas e lutam pela reabertura do comércio podem ser, hoje, no contexto da pandemia, os novos criminosos do Brasil.
Isso porque a sua conduta pode incidir nas figuras típicas dos arts. 267 ou 268, do Código Penal. Afinal, não somos nós quem definimos quem é criminoso ou não. É a lei, quando se verifica o descumprimento do comando nela previsto e a violação ao bem jurídico penalmente tutelado.
Enfim, a pandemia nivelou as classes sociais, pessoas de bem ou não, empregados e empregadores, ricos ou pobres, mostrando que todos nós podemos ser vítima desse contexto da pandemia da Covid-19 e, na esfera das ciências criminais, principalmente mostrando que o perfil do criminoso pode mudar de acordo com a situação e com os interesses.
Continuamos com a perseverança de que o Estado atuará, eficazmente, para controlar esse contexto da pandemia. Mas não basta somente o Estado fazer a sua parte: #FicaEmCasa.
REFERÊNCIAS
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BUSATO, Paulo Cesar. Direito Penal: parte geral. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2015.
MOLINA, Antonio Garcia-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia: introdução a seus fundamentos: introdução às bases criminológicas da lei 9.099/95. 4.ed. São Paulo: editora Revista dos Tribunais, 2002.
PRADO, Luiz Régis, et all. Curso de Direito Penal Brasileiro. 13.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
WORD HEALTH ORGANIZATION (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE). Rolling updates on coronavirus disease. Disponível aqui. Acesso em: 29 de Março de 2010.
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