A pandemia do coronavírus e (finalmente) a prisão como ultima ratio
Por Matheus Trindade e Karina Mombelli
Enquanto os atores jurídicos vinham se adequando à nova realidade processual penal trazida pela Lei 13.964/19, também denominada de Pacote Anticrime, houve a disseminação da pandemia vivida atualmente (Covid-19), cuja situação atípica forçou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução nº 313/2020, a suspender todos os prazos processuais e audiências em território nacional (exceto os do STF e da Justiça Eleitoral) até o dia 30 de abril de 2020, e também motivou a edição da Recomendação nº 62 de 2020.
A citada recomendação do CNJ foi direcionada para os juízes das varas da infância e da juventude, das varas criminais e das varas de execução criminal, orientando-os a ter maior seletividade na decretação e manutenção de segregações cautelares – o que na realidade já consiste na própria lógica do processo penal pátrio, que infelizmente ainda não foi bem recepcionada por alguns julgadores.
Além disso, também ampliou a possibilidade de concessão de prisões domiciliares em face do risco de contaminação do coronavírus dentro do sistema penitenciário que, lembra-se, já foi reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal como “estado de coisas inconstitucional” na ADPF nº 347.
Diante desse cenário fático e jurídico caótico, esta breve coluna visa passar ao leitor algumas bases de como vem se portando a jurisprudência sobre a Recomendação nº 62 de 2020 do CNJ. Para tanto, selecionou-se alguns julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que possui abrangência nacional.
A análise jurisprudencial, no âmbito das prisões preventivas em que o cliente não integra o grupo de risco, permite concluir que o STJ vem entendendo que devem ser mantidas as segregações no atual quadro epidemiológico somente nos casos em que haja a comprovação de necessidade inarredável da segregação – mormente casos de crimes cometidos com particular violência, em que o preso tenha comprovada periculosidade, mesmo que se trate de crime que em tese envolva violência e grave ameaça, com fulcro nos arts. 1º e 4º da Recomendação nº 62 de 2020 (HC nº 567.457-DF, de relatoria do Ministro Rogério Schietti Cruz).
Em crimes cometidos sem violência ou grave ameaça, com amparo no art. 4º da recomendação supramencionada, o STJ vem entendendo que deve ser ponderado o risco para a saúde da pessoa presa e dos demais detidos nos estabelecimentos prisionais, de modo que somente em casos extremos deve ser decretada ou mantida a prisão preventiva (nesse sentido, HC nº 566.128/SP; HC 567.961/SC; HC 567.821/SP).
Já nos pleitos liberatórios que tenham como base o enquadramento do cliente em grupo de risco do coronavírus, situação de saúde que enseja maior concretude ao pedido na medida em que o risco à vida é concreto, é imprescindível que o requerimento esteja acompanhado da devida comprovação da doença alegada, não bastando somente a anexação de receitas de medicamentos (HC nº 569.650/RJ, de relatoria do Ministro Antonio Saldanha Palheiro).
Com base nos citados precedentes, é importante mencionar que o advogado, ao formular eventual pedido de revogação da prisão preventiva, deve se atentar ao art. 4º da recomendação, combinando-o com os arts. 312 (em especial o perigo gerado pelo estado de liberdade do acusado) 315 e 316 (nos casos em que a prisão persista por mais de 90 dias), todos do Código de Processo Penal.
Diante dos acontecimentos jurídicos relatados, parece que o Covid-19, no âmbito do processo penal, veio para finalmente transformar a prisão em ultima ratio, reflexão essa que se torce que permaneça após o controle e encerramento da pandemia.
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