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A perda da identidade do portador de doença mental

A perda da identidade do portador de doença mental

(…) crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão – para isso é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram sob as quais se desenvolveram e se modificaram. Desde que para mim se abriu essa perspectiva, tive razões para olhar em torno, em busca de camaradas doutos, ousados e trabalhadores (e ainda olho). O objetivo é percorrer a imensa, longínqua e recôndita região da moral – da moral que realmente ouve que realmente se viveu – com nossas perguntas, com nossos olhos…(…). (NIETZCHE, 2009. p. 12).

Essa passagem de Nietzsche pode traduzir muito bem a descontinuidade do tratamento ao portador de doença mental que sofreu o Brasil no final do século XIX com o surgimento do conceito de anormal fazendo com que a psiquiatria passasse a abranger, não apenas a doença mental propriamente dita mais toda e qualquer forma de desvio de comportamento tido como anormal, como os dos degenerados, epiléticos, alcoólatras e criminosos (PORTOCARRERO, 2002. p. 13).

É a perda da identidade do louco, não por ser louco, mais por ser diferente

Com o surgimento do ideal da exaltação da razão, dentro do advento da Idade Moderna, o louco passa a se tornar um sinal de contradição em si mesmo, por ser diferente passa a ser tratado não como um simples erro, mas, como uma ameaça a razão.

Dessa forma, serão os hospícios que se transformarão em fins terapêuticos e consequentemente penitenciários deixando a exclusão do louco ainda mais evidente.

Teria a loucura a necessidade de ser aprisionada?

As promessas de cura juntamente com as justificações do poder, onde se constrói um saber acerca da loucura com o domínio da medicina, justificam o isolamento do portador de doença mental fazendo com que o louco não agrida a sociedade com o seu modo de agir. Cabe dizer que essas formas de isolamento se justificavam das maneiras mais diversas possíveis – proteção de si mesmo e da família; libertação de influências pessoais; impor novos hábitos e por fim, impor um tratamento médico forçado.

Perda da identidade

Acredito que a dor maior que a pessoa tem ao enlouquecer seja a perda da identidade e, consequentemente, a da autoestima, uma espécie de desidealização de si mesma. Em geral, a pessoa louca se sente uma grande porcaria, o que mostra que houve um dia em que esperou muito de si, talvez demais e não consegue corresponder à própria expectativa, nem ao todo e nem em parte, porque adoeceu, ou adoeceu mesmo por causa disso (DAMETTO, 2012).

A criminologia social exerce um grande domínio sobre aquele que padece de uma patologia mental. Não podemos esquecer de que não deve existir nas relações sociais a etiqueta de quem é ou não normal. As diferenças são frutos das relações interpessoais dentro da sociedade, só o fato do indivíduo ter um diagnóstico psiquiátrico já faz com que recaiam sobre ele as influências sobre seus relacionamentos e sua identidade sofrendo a marca que o outro elege sobre ele, afastando de uma vez por todas o sujeito social que existia antes de sofrer uma patologia psicológica (SILVA, 2000, p. 233).

O que não podemos esquecer jamais é que a identidade e a diferença andam juntas, lado a lado. A identidade é uma característica autônoma capaz de si só, enquanto a diferença é aquilo que o outro é (SILVA, 2000, p. 74). Assim concluímos que, tanto as diferenças quanto as identidades são construídas e não dadas e acabadas.

E é nesse ponto que precisamos focar, quando falamos de um portador de doença da mente, a sua identidade assim como a de uma pessoa “normal” está sempre em construção. Frear essa construção do seu eu é impedir que ele a tenha plenamente da sua maneira, como ela mesmo quer construir.

Trata-se, ainda, não de deixar o louco viver a sua loucura, porém de, em um novo contexto de cidadania, dar-lhe o real direito ao cuidado. Não de ser excluído, violentado, discriminado, mas de receber ajuda em seu sofrimento, em sua positividade e em sua possibilidade de ser sujeito. Enfim, trata-se de trabalhar efetivamente para que ele seja um sujeito de desejos e projetos (AMARANTE, 1996, p. 115).

Não há que se falar no aprisionamento de seres de direito só porque são portadores de uma enfermidade mental. O louco não deve perder totalmente a sua capacidade jurídica, não deve deixar de ser sujeito de direito e, além disso, deve ter a sua identidade preservada.

E essa realidade só poderá ser transformada em conjunto com toda a sociedade saindo do território exclusivo da psiquiatria e formando um conjunto com todas as ciências, para que o portador de doença mental resgate a sua identidade moral. A sociedade como espaço real da vida humana, tem essa obrigação na participação dessa solução (AMARANTE, 1996, p. 75).


REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo Duarte de Carvalho. O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.

DAMETTO, Carmem. Loucura: Mito e Realidade. Editora KBR, 2012.

NIETZCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2009.

PORTOCARRERO, Vera. Arquivos da Loucura: Juliano Moreira e a descontinuidade da psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2002.

SILVA, Tomaz Tadeu. (org.) Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000.


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André Parmanhani

Advogado (RS)

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