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A perturbação da tranquilidade como um problema civil e não penal

A perturbação da tranquilidade como um problema civil e não penal

Recentemente ganhou repercussão a notícia de uma idosa de 68 anos, na cidade de Santa Rita do Passa Quatro (SP), que foi condenada a 25 dias de prisão simples, pela contravenção penal do artigo 65 da Lei 3688/41, combinado com o artigo 71 do Código Penal.

Segue trecho da sentença:

(…) Narra a denúncia que a denunciada abriga em sua  residência vários animais, dentre os quais estão 4 (quatro) galos que produzem ruídos durante a madrugada e vêm perturbando o sossego e a tranquilidade da vizinhança, conforme se verifica pelos áudios registrados com a gravação do canto das aves, que, por diversas vezes, têm prejudicado o descanso das vítimas.  

Assevera ainda que a ré, apesar de orientada a tomar providências para dar solução à perturbação provocada por seus animais, no sentido de mantê-los na parte da frente de sua propriedade, e mesmo depois de submetida a processo criminal por fatos semelhantes (Ação Penal nº 000047571.2017.8.26.0547), não buscou solucionar o problema, postura que configura acinte e motivo reprovável. (…)

Ao contrário, a ação penal anteriormente ajuizada não intimidou a acusada na medida em que, por acinte ou por motivo reprovável, manteve as aves no mesmo local causando perturbação da tranquilidade dos ofendidos.    

Destarte, comprovadas a materialidade e da autoria do delito de perturbação da tranquilidade alheia e restando demonstrado que a ré não procurou impedir o barulho produzido pelos animais de que tem a custódia e que, por acinte ou motivo reprovável, permitiu que seus galos continuassem a cantar de madrugada junto ao muro de divisa da casa das vítimas, causando incômodos, a condenação é medida que se impõe. 

Passo à dosagem da pena, atenta às diretrizes dos artigos 59 e 68 do Código Penal. 

Por não ostentar antecedentes criminais (fl. 41) aplico a pena no patamar mínimo, ou seja, prisão simples de 15 (quinze) dias (…).

Primeiramente, é inacreditável que uma lei tão ultrapassada como a Lei das Contravenções Penais ainda esteja em vigor, dando margem a situações bizarras como a narrada, em que a conduta de uma idosa de 68 anos que mantém galos em sua residência é considerada “um acinte”, uma conduta reprovável, uma provocação aos vizinhos. 

A sentença, com todo o respeito ao (a) magistrado (a) responsável pelos autos, merece toda a sorte de críticas pelo punitivismo desnecessário e exacerbado.

Primeiramente, a condenação pura e simples merece críticas. Ainda que seja um anacronismo no sistema jurídico moderno, a Lei das Contravenções Penais está em vigor e volta e meia aparece em questões como a ilustrada pela sentença. Cabe, então, ao Ministério Público e ao Judiciário aplicar a Lei com parcimônia e critérios.

Dispõe o artigo 65 da Lei das Contravenções Penais:

Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade, por acinte ou por motivo reprovável:

Pena – prisão simples, de quinze dias a dois meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis.

Acinte, no dicionário:

1. De forma intencional, de propósito, de modo provocador.

2. Ação praticada com premeditação, de caso pensado, a fim de contrariar, desgostar ou ofender alguém; provocação.

Obviamente a conduta da idosa de manter galos como animais de estimação não pode ser considerada uma provocação aos vizinhos. O portal Migalhas, um dos veículos que trouxe a notícia, declarou que a idosa vive em uma chácara, ou seja, fora da zona urbana, um local adequado para a criação de animais:

O MP ofereceu denúncia gerada pela reclamação de um casal de vizinhos que estava incomodado com o barulho que os 4 galos causavam na chácara onde a idosa vive há 23 anos.

De acordo com eles, os galos ficavam em uma árvore a três metros da janela do quarto onde dormem e cantavam durante toda a noite, prejudicando o sono. Alegaram que procuraram a prefeitura, mas que a idosa recusou a notificação do Centro de Zoonoses para que retirasse os animais do quintal. (grifos nossos).

O Centro de Zoonoses da cidade insistiu que a idosa se desfizesse de seus animais. Se os animais não estavam doentes ou causando doença, e se a idosa residia fora da zona urbana, entendo que faltou justa causa mesmo para a intervenção do CCZ.

A sentença colocou a conduta de uma idosa que cria animais em uma chácara como uma provocação aos vizinhos, e penalizou a ré por “não impedir os galos de cantar”. Como um ser humano impede um galo de cantar, a sentença não explicou:

Destarte, comprovadas a materialidade e da autoria do delito de perturbação da tranqüilidade alheia e restando demonstrado que a ré não procurou impedir o barulho produzido pelos animais de que tem a custódia e que, por acinte ou motivo reprovável, permitiu que seus galos continuassem a cantar de madrugada junto ao muro de divisa da casa das vítimas, causando incômodos, a condenação é medida que se impõe. (grifos nossos).

Além da condenação, houve o entendimento de aplicação do artigo 71 do CP, por haver um suposto delito continuado. 

Como se já não fosse a punição exacerbada o bastante, foram afastadas as possibilidades de transação penal e cabimento de penas restritivas:

É certo que a pena privativa de liberdade fixada poderia ser substituída por pena restritiva de direitos, porém tendo em conta que a acusada não se intimidou com a denúncia anteriormente ofertada pelo Ministério Público e, mantendo as aves no mesmo local, prosseguiu sem interromper ou impedir a importunação do sossego das vítimas, inviável a substituição posto não preenchido o inciso III, do artigo 44 do Código Penal. Ao depois, a execução de eventual prestação de serviços à comunidade ou entidade pública seria impossível pela notória e pública falta de estabelecimento que aceite o múnus nesta Comarca e a prestação pecuniária esbarraria na alegada capacidade financeira da ré.

Por fim a sentença concede à ré a suspensão condicional do processo, por presentes as condições que o autorizam.

Leia também perturbação da tranquilidade:

Geralmente o artigo 65 da LCP é encontrado na jurisprudência em situações que envolvem assédio sexual, antes da nova lei de assédio. Em tese, tal artigo sequer é cabível na situação encontrada nos autos objeto deste estudo:

TJ RS Recurso crime RC 71001551886. APELAÇÃO CRIME. PERTURBAÇÃO À TRANQUILIDADE. ART. 65 DA LC. CONDENAÇÃO. Pelo contexto fático, o R. perturbou a tranquilidade da vítima, por motivo reprovável, demonstrado ao pedir-lhe um beijo e tentado agarrá-la à força. NEGADO PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME.  (RC 71001551886 RS, julgado em 11 de fevereiro de 2008).

Ainda assim, urge repensar a finalidade da ultrapassada Lei das Contravenções Penais. 

Situações como a descrita, de conflito entre vizinhos, seriam mais adequadas ao Direito Civil. No entanto, a vigência da LCP permite que tais pequenezas vão parar na esfera penal.

O Direito Penal Mínimo defende o direito penal como a ultima ratio, quando as demais esferas falharam em solucionar o conflito. Uma ação cível resolveria o conflito com menos aborrecimento a uma idosa de 68 anos que vive há 23 anos no mesmo lugar, com seus galos de estimação. 


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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