A plea bargaining no sistema processual penal norte-americano
As recentes discussões envolvendo a colaboração premiada no Brasil remetem a outros sistemas processuais mais familiarizados com o instituto.
No common law, recebida a acusação, há uma audiência prévia de julgamento. Neste momento, o acusado é chamado a manifestar-se sobre o teor de uma acusação criminal. A resposta que ele dá ao Juiz é chamada de plea.
A declaração pode ser de culpado (guilty plea), não culpado (not guilty plea, que ocorre também nos casos em que o acusado simplesmente silencia) ou pode haver contestação da acusação (nolo contendere ou no contest plea), quando o acusado não admite nem nega a culpa. Existe, também, a Alford ou Kennedy plea (North Carolina v. Alford, 1970 / Kennedy v. Frazier, 1987), quando o acusado se declara culpado, com protesto simultâneo de inocência; isto é, assume a culpa para não correr o risco de uma condenação a uma pena mais grave. Há, ainda, casos nos quais o acusado simplesmente declara que o julgamento não pode continuar (peremptory pleas), como na hipótese de alegar que já foi previamente processado por aquela mesma acusação (bis in idem).
Segundo a U.S. Supreme Court, essa declaração do acusado deve ser consciente, voluntária e inteligente (Johnson v. Zerbst, 1938).
Ao contrário do civil law, onde a confissão é apenas mais uma prova, no common law, quando o acusado se declara culpado, ele é imediatamente sentenciado, sem a necessidade de um processo para formação da culpa.
Antes de se chegar a essa declaração, porém, é possível que a promotoria negocie (ou barganhe) um acordo com a defesa. É o que se conhece por plea bargaining ou plea agreement, onde o acusado de um caso criminal reconhece a sua culpa em relação a uma determinada acusação e, em troca, recebe alguma concessão por parte da promotoria.
Historicamente, a plea bargaining era um processo privado entre acusação e defesa, cuja publicidade só era conhecida depois da homologação judicial. Entretanto, nos últimos anos, as vítimas têm se organizado em grupos e reivindicado participação nesses acordos.
A plea bargaining existe por razões práticas: os acusados podem evitar o tempo e os altos custos de uma defesa judicial, o risco de uma punição severa por um crime mais grave e a exposição midiática que um caso criminal representa. A promotoria, por outro lado, economia tempo e recursos com a demora do processo. Ambas as partes alcançam algum objetivo, sem a incerteza de terem que aguardar um pronunciamento judicial. O sistema de justiça criminal poupa recursos, ao não precisar conduzir um julgamento sobre todos os crimes denunciados.
O sistema adversarial norte-americano não permite que o Juiz tenha acesso independente às provas e indícios obtidos pela acusação sobre um caso criminal. O Juiz não tem como determinar se o caso tem força suficiente ou não contra o acusado. As partes controlam o resultado dos processos, exercitando seus direitos ou barganhando sobre eles. Não há acusação compulsória (compulsory prosecution), o que dá ampla margem de discricionariedade. A Corte não participa das discussões do acordo. O acordo torna-se público quando o acusado declara sua responsabilidade.
Qualquer das partes pode propor a negociação e ela só é válida se chegarem a um acordo que satisfaça a ambos. Normalmente, a plea bargaining envolve a assunção de culpa (plea guilty) a uma acusação menos grave ou a apenas uma dentre várias acusações, com a dispensa das demais, mas também pode ensejar o reconhecimento da culpa tal como proposta pela acusação (guilty as charged), porém com a promotoria recomendando uma pena mais branda. O Juiz, entretanto, não é obrigado a aceitar a recomendação da acusação. A maioria das negociações de culpa estão sujeitas à aprovação da Corte, mas há casos em que o Judiciário não terá qualquer participação, p. ex., quando a promotoria acorda abrir mão da acusação (drop charges) em troca da assunção da culpa por um fato menos grave.
A plea bargaining pode envolver um período probatório (probation), durante o qual acusado precisa cumprir determinados requisitos (ex.: programas de reabilitação, reparação de danos causados, etc.), que, se satisfeitos, determinam a remoção das acusações.
Plea bargaining pode ser um aspecto dos acordos de cooperação (cooperation agreements), onde os acusados colaboram com as autoridades para recuperar bens, direitos e valores, ou revelar a identidade de outros membros de uma organização criminosa.
Geralmente, quando o acordo é submetido aceito pela Corte a matéria não pode mais ser rediscutida em grau recursal. Entretanto, existe a possibilidade de o acusado aderir ao acordo, mediante determinadas condições (conditional plea bargaining), podendo recorrer de alguma matéria específica (p. ex. violação de direito constitucional). O acordo pode ser revogado em caso de alguma violação (ex.: Dogget v. USA, 1992, onde a Suprema Corte reconheceu que a violação da duração razoável do processo – 8 anos e meio de prisão cautelar sem julgamento – anulou o acordo e o réu foi colocado em liberdade).
Existem diferentes tipos de barganha: a) na charge bargaining, o acusado se declara culpado de um crime menos grave que a acusação original; b) na count bargaining, o acusado assume apenas uma parte dentre várias acusações; c) na sentence bargaining, a promotoria se compromete a pedir em juízo determinado benefício na sentença (o que pode ser negado pelo Juiz); d) e na fact bargaining o acusado se declara culpado, mas as partes acordam sobre certos fatos que afetarão a forma como o acusado será punido.
A Federal Rules of Criminal Procedure acolhe dois tipos de plea agreements (Rule 11). No primeiro caso, existe uma recomendação meramente opinativa por parte do promotor e o acordo não vincula a Corte. O acusado não pode retirar sua confissão se a Corte decidir impor uma sentença fora dos termos do acordo. Se o acordo for proposto antes para homologação e a Corte aceitá-lo, fica vinculada a ele. Caso rejeite o acordo, o acusado pode se retratar da confissão. Dada a regularidade dessas negociações, a Corte Superior da Califórnia possui até um formulário com esses dois principais tipos de acordos e as advertências obrigatórias ao acusado pela lei federal e estadual.
Os aspectos éticos costumam ser altamente questionados. Argumenta-se que os acusados possuem determinados direitos indisponíveis e que, assumindo a culpa, “vendem” esses direitos à acusação em troca de concessões que julgam mais importantes que os próprios direitos. A vinculação do instituto com recompensas também estaria muito próxima de ameaças e coerção na obtenção de confissões. Nos EUA, não há limitação para aceitação de acordos por acusados presos, o que poderia reduzir o número de negociações.
Não é incomum que a defesa, no receito de ter uma condenação muito mais séria, acabe assumindo a culpa por um delito menor. Enquanto essas pessoas seriam absolvidas por faltas de provas ou por realmente serem inocentes, acabam confessando por medo (YANT, 1991, p. 172). Em função disso, a Teoria dos Jogos (Game Theory) tem sido utilizada para explicar a tamanha aceitação do instituto entre os acusados.
Alguns autores chegam a comparar o moderno sistema norte-americano da plea bargaining ao sistema europeu medieval de tortura, já que ambos seriam coercitivos e envolveriam condenações sem julgamento.
Uma outra preocupação no sistema norte-americano é de que existem advogados de defesa que se especializam em bargaining e acabam adquirindo boa relação com os promotores. Desta forma, tendem a orientar seus clientes para um acordo, mesmo quando o cenário talvez não seja o melhor possível. O promotor pode desejar manter uma alta taxa de condenações e evitar perder casos de grande repercussão. Por fim, a plea bargaining poderia servir para aumentar a renda dos municípios, através do arbitramento de fianças por crimes de jurisdição local, mais brandos, em relação a crimes mais graves, afetados à jurisdição estadual.
Argumenta-se, por outro lado, que a plea bargaining beneficiaria a sociedade, ao assegurar que seja mais difícil que os reais culpados acabem absolvidos.
A constitucionalidade do plea bargaining agreement foi reconhecida pela Suprema Corte no caso Brady v. USA, em 1970, quando o Tribunal estipulou algumas condições para que o acordo seja válido: a) o acusado deve estar plenamente consciente das consequências diretas do acordo, incluindo o valor real de todos os compromissos assumidos (McCarthy v. USA, 1969); b) a declaração do acusado não pode ser induzida por ameaças, nem por falsas promessas ou promessas irrealizáveis; c) o acordo não pode ser posteriormente desfeito simplesmente porque o acusado resolveu reconsiderar sua decisão; d) os tribunais devem se certificar de que as declarações de culpa são voluntárias e estrategicamente orientadas por defensores competentes e que não haja nenhuma dúvida sobre seu rigor e fidelidade às admissões do acusado.
Posteriormente, a Suprema Corte definiu que, quando os acordos são rompidos, existem remédios legais cabíveis; o acusado tem direito subjetivo a obter os benefícios do acordo (Santobello v. New York, 1971). O investigado tem legítimo interesse na proposta de delação que não tenha sido aceita por falta de orientação apropriada de seu advogado (Lafler v. Cooper, 2012 / Missouri v. Frye, 2012). Para se ter uma noção da importância do instituto nos EUA, em 2001, 94% dos casos criminais eram resolvidos através da barganha.
A análise do instituto na ótica do Direito Comparado nos permite verificar suas peculiaridades, seus méritos e defeitos. Certamente uma introjeção da barganha no processo penal brasileiro – tal como pretendido com o projeto de novo Código de Processo Penal – demandaria sérias reflexões sobre o sistema acusatório. Nada obstante a isso, é certo que o crime organizado é uma preocupação mundial e, considerando sua imbricação com as raízes do próprio Estado, torna-se cada vez mais impensável ignorar a necessidade de colaboração de agentes internos. Essa colaboração só será obtida se as autoridades públicas responsáveis pela acusação formal (no Brasil, o Ministério Público) estiverem dispostas a negociar, a abrir mão de alguma parcela da responsabilização penal para obter um ganho maior no conjunto.
O Brasil é signatário da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo, art. 26) e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (Convenção de Mérida, art. 37), tratados que preveem que os Estados-parte adotem as medidas apropriadas para que as pessoas que participem ou tenham participados de organizações criminosas colaborem com as autoridades competentes, através do fornecimento de informações úteis, com fins investigativos e probatórios, mediante a mitigação das penas, a proteção e, em certos casos, até a imunidade judicial.
Por certo, nosso sistema legal precisaria de adaptações. Isso não implica subjugar as garantias fundamentais da pessoa. O acusado pode e precisa ser bem orientado por um advogado que efetivamente defenda seus interesses e esteja tecnicamente preparado para levá-los à mesa de reuniões no momento certo, além de saber lidar com as evidências apresentadas pela acusação. O importante é que o jogo seja limpo e ético, disputado sob a égide de regras claras para todos. A colaboração premiada, tal como a plea bargaining norte-americana, é uma estratégia de defesa válida, mas deve ser bem manuseada.
REFERÊNCIAS
YANT, Martin. Presumed Guilty: When Innocent People Are Wrongly Convicted. New York: Prometheus Books, 1991.