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A polêmica PEC 29/2015

A polêmica PEC 29/2015

A proposta de Emenda à Constituição nº 29/2015, através da inclusão da expressão “desde a concepção”, abre uma brecha para criminalizar o aborto em qualquer circunstância, mesmo em caso de estupro ou risco de vida para a gestante, as duas situações permitidas pelo Código Penal Brasileiro:

Ementa:

Altera a Constituição Federal para acrescentar no art. 5º, a explicitação inequívoca “da inviolabilidade do direito à vida, desde a concepção”.

Explicação da Ementa:

Altera o art. 5º da Constituição Federal para explicitar que o direito à vida é inviolável desde a concepção. (link)

Outro projeto em andamento visa a criminalizar o aborto em caso de má formação do feto:

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) analisa um projeto de lei que criminaliza o aborto provocado por motivo de malformação fetal. O PL 2.574/2019, do senador Flávio Arns (Rede-PR), aguarda o recebimento de emendas.

A proposta tem como objetivo evidenciar a punibilidade da prática de aborto também nos casos de malformação fetal. De acordo com o Código Penal brasileiro, a prática do aborto só será permitida nos casos em que não há outra forma de salvar a vida da gestante e em casos de estupro.

Entretanto, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou procedente a realização de aborto quando se tratar de fetos com anencefalia, ou seja, a ausência de partes do cérebro. Na ocasião, foi decidido, por 8 votos a 2, que o feto anencefálico não tem vida e, por isso, não pode ser considerado aborto. (link)

Sobre a permissão de aborto em caso de má formação do feto, Roxin ponderou:

O direito alemão, contrariamente ao brasileiro, permite expressamente o aborto de fetos que apresentem severas lesões hereditárias (§ 218 a I, II, StGB). Leva ele em conta a sobrecarga anímica e física que uma criança deficiente pode representar para a mãe, renunciando a exigir da vítima tal sacrifício através do direito penal. E creio isto correto. Por um lado, aquela que se decide a dar à luz e criar uma criança que sofra de severa deficiência realiza um elevado valor ético, merecendo admiração. Mas isto deve ocorrer voluntária, e não coativamente. O direito não pode exigir o heroísmo e tem de se contentar com o “mínimo ético”. Se isto estiver certo, tem de ser igualmente permitido deixar de implantar um embrião com severas lesões hereditárias. Afinal, seria insensato que se tivesse de implantar na mãe um embrião que depois vem a ser abortado, o que só acarretaria encargos desnecessários para ela. (ROXIN, p.185). (grifos nossos).

A interrupção voluntária da gravidez continua a ser um tabu em muitos países. No entanto, criminalizar a prática mesmo em caso de violência sexual ou quando a gestante corre risco de vida se for adiante com a gestação é legitimar uma barbárie, é cruzar um limite mínimo imposto pela civilização. Mesmo que a questão comporte controvérsia, existe um consenso internacional que, em caso de violência sexual e risco para a gestante, o aborto deve ser permitido. Mais uma vez, Roxin:

A maioria dos ordenamentos jurídicos modernos segue, portanto, um caminho intermediário e caminha entre dois modelos de solução, que chamarei, de modo simplificador, de “solução de indicações” e “solução de prazo”. Segundo a solução de indicações, o aborto é, em princípio, punível. Ele é, contudo, justificado e impunível, se for realizado por um médico, a desejo da gestante, e se estiver presente determinada indicação (p. ex., graves perigos para a saúde física ou anímica da mãe, gravidez decorrente de delito sexual, situação social gravosa, ou idade demasiado jovem da mãe). Segundo a solução de prazo, pode-se, dentro de determinado prazo — em geral, três meses — interromper a gravidez a desejo da mãe, sem que se mencionem motivos. Após o decurso deste prazo, somente uma indicação médica posteriormente surgida pode levar ao aborto. (Idem, pgs. 186/187). (grifos nossos).

Além do retrocesso inacreditável que está em jogo com a PEC 29/2015, existe a obscenidade da “bolsa-estupro”. O Estatuto do Nascituro, PL 478/2007, assim dispõe:

Art. 13 O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos, assegurando-lhe, ainda, os seguintes:

I – direito prioritário à assistência pré-natal, com acompanhamento psicológico da gestante;

II – direito a pensão alimentícia equivalente a 1 (um) salário mínimo, até que complete dezoito anos;

III – direito prioritário à adoção, caso a mãe não queira assumir a criança após o nascimento.

Parágrafo único. Se for identificado o genitor, será ele o responsável pela pensão alimentícia a que se refere o inciso II deste artigo; se não for identificado, ou se for insolvente, a obrigação recairá sobre o Estado.” (link) (grifos nossos).

Em reportagem do El País, um ativista pró-vida assim disse sobre a bolsa-estupro:

Espírita como Girão, Bassuma é um dos autores do projeto, que garante ao feto os mesmos direitos dos nascidos vivos e prevê assistência financeira às vítimas de estupro que não abortarem. “O pessoal pró-aborto distorceu isso, como se estivéssemos criando uma bolsa estupro. É para que nenhuma mulher aborte por falta de dinheiro. Se o estuprador não tiver condições, o Estado assume”, diz Bassuma. (link). (grifos nossos).

O crime de estupro está elencado no rol de crimes hediondos, Lei 8.072/1990, segundo dispõe o artigo 1º, incisos V e VI,   da mencionada lei:

Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados:   

(…)              

V – estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o);

VI – estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o); (…).

Lembremos que, até o tardio ano de 2005, ano em que tal atrocidade foi retirada do Código Penal, havia a possibilidade do crime de estupro ser anulado se o criminoso se casasse com a vítima:

Art. 107 – Extingue-se a punibilidade:

[…]

VII – pelo casamento do agente com a vítima, nos crimes contra os costumes, definidos nos Capítulos I, II e III do Título VI da Parte Especial deste Código;

VIII – pelo casamento da vítima com terceiro, nos crimes referidos no inciso anterior, se cometidos sem violência real ou grave ameaça e desde que a ofendida não requeira o prosseguimento do inquérito policial ou da ação penal no prazo de 60 (sessenta) dias a contar da celebração; (…)”. (grifos nossos).

CONCLUSÃO

Se não existem dúvidas, em qualquer sociedade civilizada, da hediondez do crime de estupro, é profundamente preocupante criminalizar o aborto nessas circunstâncias. Dados do 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública indicam que, no ano de 2014, foram registrados 47.643 casos de estupro em todo o país. A violência sexual é:

a mais cruel forma de violência depois do homicídio, porque é a apropriação do corpo da mulher – isto é, alguém está se apropriando e violentando o que de mais íntimo lhe pertence. Muitas vezes, a mulher que sofre esta violência tem vergonha, medo, tem profunda dificuldade de falar, denunciar, pedir ajuda. (Aparecida Gonçalves, secretária nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República. Disponível aqui).

Igualmente, ignorar casos em que a gestante corre riscos de morrer caso siga com a gestação, situação em que é cabível o chamado aborto terapêutico, é penoso. Em ambas as situações, um retrocesso histórico.


REFERÊNCIAS

ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

Reportagem El País. Disponível aqui.

Reportagem Senado. Disponível aqui.


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Maria Carolina de Jesus Ramos

Especialista em Ciências Penais. Advogada.

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