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A “ponte dos espiões” e o tratamento dado ao “inimigo”

Por Adriane da Fonseca Pires

O mais recente filme de Spielberg, Ponte dos Espiões (Bridge of Spies), estrelado por Tom Hanks, traz a debate a discussão sobre a forma como um país democrático trata/deveria tratar aqueles que costuma denominar como “inimigos”.

A história se passa no final dos anos 50 (1957), em plena Guerra Fria. Tom Hanks interpreta um advogado especializado em Seguros (James Donovan), residente no Brooklyn/NY, que é convidado (escolhido pela Ordem dos Advogados Americana) para defender Rudolf Abel, espião soviético preso nos Estados Unidos. Com a posterior captura de um espião americano (Powers), o advogado Donovan é enviado a Berlin, a pedido da CIA, para negociar o resgate desse espião americano (pilotava um U2) em troca da devolução do prisioneiro Abel.

Sem pretender estragar a surpresa daqueles que não assistiram ao filme, o que possui relevo e chama a atenção, sob o enfoque das Ciências Criminais, é a forma hostil e fria como James Donovan é tratado pela população, pela opinião pública, pelos agentes públicos (policiais, funcionários da CIA, promotores e até pelo magistrado que julga o caso) pelo fato de atuar de forma escorreita a fim de garantir ao seu cliente um julgamento que observe o devido processo legal. Embora estivesse afastado da prática, da advocacia criminal, Donovan tinha, como objetivo, obter um julgamento justo. Sua postura poderia ser traduzida na advertência feita por Aury Lopes Júnior, segundo a qual, “o processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (direito penal), senão que desempenha papel limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido” (LOPES JR., 2015, p.32).

Há alguns momentos dessa primeira parte do filme que merecem ser destacados. Em uma conversa privada entre o juiz, James Donovan e o procurador/promotor, o advogado invoca a ilegalidade de um mandado de busca realizado no quarto do hotel em que estava hospedado o espião soviético. Nessa ocasião, o próprio magistrado, em uma atitude nada ética, “dá um pito” em Donovan, referendando a conduta ilegal e abusiva dos encarregados da persecução criminal, uma vez que, para aquele julgador, em resumo poderíamos dizer que, as garantias processuais devem ser outras, ou até, nenhuma, quando se trata de julgar o inimigo, uma vez que há o “interesse público” do Estado Americano em proteger seus segredos e a “segurança nacional” em detrimento dos direitos individuais da pessoa processada/julgada. O inimigo soviético foi eleito o inimigo de toda a sociedade americana.

Em outra cena, o advogado Donovan é interpelado por um agente da CIA acerca dos segredos que teriam sido contados a ele pelo seu cliente. Ao perceber que o direito de preservar o sigilo profissional estava sofrendo uma tentativa de “flexibilização” em prol do “interesse público”, o advogado se revolta e pontua, com firmeza, que “todos devem estar submetidos ao livro de regras (Book of Rules), ou seja, à Constituição”. Assim, ainda que soubesse, não revelaria segredos a si confiados pelo espião soviético.

Diante do célere julgamento do inimigo (espião), Donovan recorre à Suprema Corte onde sustenta que a validade democracia americana está exatamente no fato de o Estado Constitucional de Direito ser garantido e acessado por americanos e estrangeiros, insurgindo-se contra a sistematização dos seres humanos em duas categorias diferentes: os cidadãos e os inimigos.

Vale referir, no contexto da sustentação oral de Donovan na Suprema Corte, o ensinamento de Norberto BOBBIO (1997, p. 171):

“O governo das leis celebra hoje o próprio triunfo na democracia. E o que é a democracia se não um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue? E em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito a estas regras? […] A democracia é o governo das leis por excelência. No momento mesmo em que um regime democrático perde de vista este seu princípio inspirador, degenera rapidamente em seu contrário, numa das tantas formas de governo autocrático de que estão repletas as narrações dos historiadores e as reflexões dos escritores políticos”.

Essa ideia é complementada por Luigi Ferrajoli (2015, p. 47) no sentido de que, em uma democracia constitucional, “a validade substancial da própria lei é subordinada à compatibilidade dos seus conteúdos com os princípios e os direitos estabelecidos pelas normas constitucionais”.

Como se pode verificar, o debate travado na primeira parte do filme encontra-se plenamente atual: o uso do Direito Penal do Inimigo. Trata-se de uma das teorias elaboradas pelo hegeliano Jakobs que se funda em alguns preceitos, tais como o da antecipação da punição, da majoração de penas e da relativização de garantias processuais.

Vale lembrar o cânone defendido por Hegel, em sua obra Princípios da Filosofia do Direito (1821) “seja uma pessoa e respeite aos outros como pessoa” (HEGEL, 2005, p. 45). Ou seja, o crime é a negação da validade da norma e a função da pena é reafirmar essa validade. Assim, o que se infere é que o inimigo, por não fazer parte do Estado, não deve usufruir das condições dadas aos cidadãos. Importa referir que:

“para Hegel, o Estado é a realidade efetiva da vida ética: essa vida se realiza, enquanto vontade substancial que executa o que sabe, na medida em que o sabe. Assim o Estado é o lugar da racionalidade. É a máxima consciência da sociedade e, portanto, deve ser sério em suas ações” (PIRES, 1986, 95-96).

Para os cidadãos, que cometem os “crimes normais” será conferido determinado tratamento e para os inimigos, praticantes dos “crimes graves”, de alta traição, serão relativizadas todas as garantias. A (in)compatibilidade desse Direito Penal do Inimigo com o Estado Constitucional de Direito gera, de há muito, discussões na doutrina penal. Para Juarez CIRINO DOS SANTOS (2013, p. 382):

“se o princípio de igualdade perante a lei é substituído pelo princípio da desigualdade legal, ou se as garantias constitucionais do processo legal devido são casuísmos dependentes do tipo de autor – aplicadas ao cidadão e negadas ao inimigo, conforme preferências idiossincráticas dos agentes de controle social –, então o Estado Democrático de Direito está sendo deslocado pelo estado policial.”

Na mesma linha, Aury LOPES JR. (2015, p. 33) reconhece que “não basta qualquer processo, ou a mera legalidade, senão que somente um processo penal que esteja conforme as regras constitucionais do jogo (devido processo) na dimensão formal, mas, principalmente, substancial”. Assim, a dicotomia entre cidadãos e inimigos não tem lugar na democracia constitucional, no Estado Democrático de Direito. As garantias processuais são garantias de todos. Como refere Lenio STRECK (2013, p. 33):

“negar a possibilidade de que possa existir (sempre) uma resposta conformada à Constituição – portanto uma resposta correta sob o ponto de vista hermenêutico – pode significar a admissão de discricionariedades interpretativas, o que se mostra antiético ao caráter não relativista da hermenêutica”.

Deste modo, não se pode deixar de refletir sobre o tamanho do Direito Penal e, a partir disso, atuar para que as garantias daqueles submetidos ao poder punitivo mediante o Processo Penal tenham suas garantias preservadas, que não haja casuísmos, que o réu se defenda de fatos e não de sua condição pessoal, que os parâmetros para a privação da liberdade sejam os parâmetros legais, sem o estabelecimento de standards de punição diversos conforme a condição do indivíduo (considerado cidadão ou considerado inimigo).


REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. O Direito Penal do Inimigo – ou o Discurso do Direito Penal desigual. In: Coordenador: Diego Augusto Bayer. (Org.). Controvérsias Criminais – Estudo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia: homenagem ao Professor Doutor Eugenio Raúl Zaffaroni. 1ª ed. Jaraguá do Sul: Editora Letras e Conceitos, 2013, v. 1, p. 371-382.

FERRAJOLI, Luigi. A democracia através dos direitos: o constitucionalismo garantista como modelo teórico e como projeto político. Tradução: Alexander Araújo de Souza e outros. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da filosofia do direito. 2. ed. São Paulo, Ícone, 2005, p. 45.

LOPES JR., Aury Celso Lima. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. São Paulo: Saraiva, 2015.

PIRES, Cecilia Maria Pinto Pires. Reflexões sobre filosofia política. Santa Maria: Pallotti, 1986.

STRECK. Lenio Luiz. O solipsismo hermenêutico e os obstáculos à concretização da Constituição no Brasil. In: TRINDADE, André Karam; BORTOLOTI, José Carlos Kraemer (Orgs.). Direitos fundamentais e democracia constitucional. Florianópolis: Conceito, 2013.

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Adriane da Fonseca Pires

Servidora Pública Federal (Analista Judiciário). Mestre em Ciências Criminais. Especialista em Direito Público.

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