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A Portaria 666/2019 e a (não) presunção de inocência

A Portaria 666/2019 e a (não) presunção de inocência

No dia 25 de julho do corrente ano, o então Ministro do Estado da Justiça e Segurança Pública, Sr. Sergio Moro, editou a Portaria 666, com o objetivo de “regular o impedimento de ingresso, a repatriação, a deportação sumária, a redução ou cancelamento do prazo de estada de pessoa perigosa para a segurança do Brasil ou de pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal.” (grifamos)

Para tanto, a referida Portaria explicita, em seu artigo 2º, quem seriam estes agentes “perigosos”, bem como define as pessoas que “tenham praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”, como sendo aqueles suspeitos de envolvimento em:

I – terrorismo, nos termos da Lei nº 13.260, de 16 de março de 2016;

II – grupo criminoso organizado ou associação criminosa armada ou que tenha armas à disposição, nos termos da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013;

III – tráfico de drogas, pessoas ou armas de fogo;

IV – pornografia ou exploração sexual infantojuvenil; e

V – torcida com histórico de violência em estádios. 


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Todavia, o critério para se atestar ou auferir esta condição ou (má) “qualidade” dos indivíduos (lembramos, meros “suspeitos”) acima citados/taxados serão avaliados pela autoridade migratória através de:

I – difusão ou informação oficial em ação de cooperação internacional;

II – lista de restrições exaradas por ordem judicial ou por compromisso assumido pela República Federativa do Brasil perante organismo internacional ou Estado estrangeiro;

III – informação de inteligência proveniente de autoridade brasileira ou estrangeira;

IV – investigação criminal em curso; e

V – sentença penal condenatória.

Já não bastasse o disparate dos três primeiros incisos, sem falar na mera condição de “suspeitos” para todos os casos, o que gera extrema indignação e estranheza são os dois últimos casos: pessoas com investigação criminal em curso e com sentença penal condenatória.

Ora, a Constituição Federal, chamada Constituição Cidadã, tem como mola propulsora e razão de ser a dignidade da pessoa humana, preceito principal dos direitos fundamentais esculpidos em seu artigo 5º. 

Estes preceitos são cláusulas pétreas, ou seja, com caráter de imutabilidade, de extrema e obrigatória observância; enfim…

Em matéria penal e processual penal, reina e se prima pelo princípio da presunção de inocência, o qual se manifesta pelo artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, que preceitua que

ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Por tal princípio, com o fito de se assegurar a dignidade da pessoa humana, todo acusado por qualquer crime é considerado inocente (ou para os mais céticos, não culpado) do crime a qual esteja sendo imputado/cogitado contra si. Assim, inexiste e é proibido qualquer tipo de tratamento diferenciado, discriminatório ou vexatório com aquele que responde acusação em processo criminal.

A presunção de inocência é amplamente debatida e invocada em matéria processual penal, porém não é o que se observa na “esquizofrênica” portaria do ministro Sergio Moro que, com total desapego e desrespeito ao que determina a Constituição Federal, entende por bem relativizar – e, nesse caso, negar – direitos fundamentais, para colocar como preceito máximo a dúvida que prejudica o réu, ao invés de se aplicar o “in dubio pro reo” – brocardo principal e norteador do direito penal.

É de toda inconstitucional, imoral e estarrecedora a Portaria em comento, vez que descabidamente já pune de forma prévia e sumária pessoas que têm contra si investigação policial (inquérito em curso), bem como aquelas com sentença penal condenatória – veja que o “bizarro” texto legal só faz menção a “sentença penal condenatória”, ou seja, sem necessariamente estar transitado em julgado a decisão –, em pleno e manifesto abuso e desrespeito ao que determina o referido artigo 5º, inciso LVII, da CF. Lembramos: cláusula pétrea.

Se é válido e sempre invocado o princípio da presunção de inocência para aquele que responde processo criminal em curso, muito mais então é para o que está tendo contra si mera investigação criminal, ou seja, em inquérito policial.

O que é óbvio e lógico para qualquer estudante de Direito e para todo operador desta importante ciência social, em especial os que militam na (ingrata) seara criminal, parece ser de interpretação diversa para o então ministro Moro, o que, data venia, não é de se estranhar por parte do ex-juiz.

Não é de se estranhar a pouca técnica deste para com os preceitos processuais penais constitucionais.

Não é de se estranhar que o Ministro simplesmente – e agora corriqueiramente – passe “por cima” do texto constitucional, com o fito de defender promiscuamente interesses próprios, seja deste ou do grupo político a qual defende ferrenhamente.

Ora, se a Portaria 666 se mostra contrária e busca tratar de forma diferenciada “pessoa que tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”, então consequentemente tal norma deve ser aplicada para “pessoa que desrespeita a Constituição Federal”, ou seja, quem viola preceitos constitucionais e princípios basilares do nosso Estado Democrático de Direito deve sofrer sanção.

O próprio ministro Moro se enquadra então nesse perfil violador constitucional. 

Seria um veneno ao próprio criador da norma?

É necessária uma urgente e extrema intervenção judicial nos atos do destacado Ministro Moro, que, com extremo solipsismo[1], subverte de forma reiterada preceitos básicos constitucionais. Simplesmente não respeita a Constituição Federal – e estamos tratando aqui só dessa recente portaria, sem falar em seus (estranhos) atos pretéritos.

Fechar os olhos e aceitar tais desmandos e abusos jurídicos como o que propõe, impõe, efetiva e celebra o ministro Sergio Moro, é enfraquecer e matar diariamente o que determina a Constituição Federal, vez que, assim o sendo, essa deixa de ter o status de “Constituição cidadã” para ter o status de “Constituição ditadora” ou “Constituição seletiva de direitos”.


[1] O solipsismo do momento presente estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente. Russell conta-nos que conheceu uma mulher que se dizia solipsista e que estava espantada por não existirem mais pessoas como ela. Solipsismo. O eu é tudo o que existe.


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