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A presunção de inocência serve também ao inocente

A presunção de inocência serve também ao inocente

Tivesse o sistema de Justiça a precisão da matemática, provavelmente pouco se argumentaria contra uma aplicação antecipada de pena. Entretanto, não o é. Aliás, é falível em demasia, seja pela dificuldade da “reconstrução probatória do passado”, seja pela inerente falibilidade do juízo humano, etc. Por isso, a presunção de inocência (e as demais garantias do processo penal) surge não como algo sem propósito, mas como uma necessidade basilar de que se tenha cautela no exercício da punição pelo Estado: cercamo-nos de precauções para que seja reduzido (eliminá-lo é impraticável) o risco de que um inocente seja submetido às agruras do cárcere.

Diferentemente, defender a flexibilização das garantias processuais penais é defender um Estado que prenda por primeiro, para, após, verificar a corretude da suspeita; em última análise, é admitir que, no afã de que nenhum criminoso reste impune, alguns inocentes sejam submetidos à prisão até que se comprove a inocência. 

Com as garantias processuais-penais, procura-se implementar o raciocínio inverso. Por esse motivo, é absolutamente incorreto se afirmar que a legislação processual penal seja insensível às vítimas de delitos ao estabelecer garantias a quem acusado de um crime; estabelece garantias ao acusado de um crime exclusivamente porque é sensível a tantos inocentes presos e condenados, no curso da história, por um processo penal precipitado, desprovido de garantias suficientes e, algumas vezes, a serviço da vontade de alguns – tomemos, como exemplo, o caso de Jesus Cristo, executado em decorrência de um julgamento que seria, hoje, declarado nulo pela Suprema Corte (executada a pena em segunda instância, estaria morto o réu antes da anulação).

Não que se advogue a completa abolição da prisão, inclusive daquela aplicada no curso do processo (ou até mesmo da investigação), de caráter preventivo. O que se defende é que se respeite a excepcionalidade de qualquer antecipação de prisão e a prevalência das garantias de cada indivíduo, acusado ou não, que deve ser tratado como inocente até o término de qualquer possibilidade concreta de absolvição.

Da mesma forma, não que se negue a morosidade do processo penal no país; parece haver unicidade de todos os lados quanto a isso. Entretanto, por todos identificado o problema, é incompreensível que inexista engajamento geral em prol de uma reforma do processo penal, mas que exista esse engajamento direcionado a temática (flexibilização da presunção de inocência) que nenhuma relação possui com o problema identificado.

Na medicina, identificada a patologia, pratica-se o tratamento médico específico e adequado ao diagnóstico. No Direito, o que se tem exigido é um tratamento oportunista, incapaz de devolver a “saúde” ao processo (que permanecerá moroso), mas capaz de amenizar sintomas diversos, como o desejo social (tão manipulável midiaticamente) por punição a todo custo e o mais antecipadamente possível.


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Raul Linhares

Advogado criminalista. Mestre em Direito Público (UNISINOS/RS). Professor de Direito Penal.

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