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A “prisão em flagrante” do advogado por desacato

A “prisão em flagrante” do advogado por desacato

Resgato, para a breve crítica, episódio ocorrido em meados do ano passado, na cidade de Caruaru/PE, em que o advogado Sávio Delano, em pleno exercício das suas funções, teria recebido voz de prisão pela suposta prática do crime de desacato a um servidor policial militar, tendo sido colocado, à força, no compartimento traseiro de uma viatura, ainda que sob protestos e advertências quanto às suas prerrogativas profissionais e ao fato de que não estaria oferecendo qualquer resistência, sendo solenemente ignorada sua solicitação para que, ao menos, pudesse ser conduzido no compartimento de passageiros da viatura policial.

Todo o ocorrido fora capturado em claro e audível registro audiovisual, restando claro – ao menos no trecho registrado e divulgado – que i) o advogado estava em pleno exercício de suas atividades profissionais; ii) fora imputada a ele a prática do crime de desacato pelo servidor responsável pela detenção; iii) o advogado não oferecera qualquer resistência física, embora tenha tentado racionalizar sobre a arbitrariedade da prisão; iv) houvera emprego de força física para colocar o advogado no compartimento “seguro” da viatura policial; v) aproximadamente cinco milicianos protagonizaram a cena.

Preliminarmente e, a despeito do entendimento sedimentando no âmbito do Supremo Tribunal Federal, calha argumentar quanto à duvidosa constitucionalidade do tipo penal prefigurado no art. 331, do Código Penal, cujo verbo nuclear é precisamente “desacatar”, elemento normativo com fronteiras de significação demasiadamente amplas para um sistema de tutela penal orientado pela legalidade estrita.

O que é, afinal, “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”?

A descrição típica aberta, somada à (histórica e empiricamente atestada) tradição autoritária verificada na atuação das agências punitivas do Estado promove, amiúde, um ambiente favorável à violação da garantia fundamental de liberdade de expressão (art. 5º, inc. IX, CR/88 c/c art. 13, da Convenção Americana de Direitos Humanos), deixando ao critério do próprio “funcionário público”/“vítima”, nos casos envolvendo agentes policiais, a subsunção fático-normativa de que se extrai a (não raro fantasiosa ou, no mínimo, antirrepublicana) consumação do delito.

A mistura é inflamável e a tragédia, anunciada!

A “prisão em flagrante” do advogado

Pois bem. Ainda que fosse o caso, seguiria ilegal a aludida prisão, eis que direcionada contra advogado no exercício das funções.

O art. 7º da Lei n.º 8.906/94, em seu § 3º, preconiza norma de objetiva intelecção:

Art. 7º São direitos do advogado:

[…] IV – ter a presença de representante da OAB, quando preso em flagrante, por motivo ligado ao exercício da advocacia, para lavratura do auto respectivo, sob pena de nulidade e, nos demais casos, a comunicação expressa à seccional da OAB;

[…] § 3º O advogado somente poderá ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável, observado o disposto no inciso IV deste artigo.

A regra é clara! Por motivo vinculado ao exercício das suas funções o advogado só pode ser preso em flagrante delito por crime inafiançável, estando a validade do respectivo auto de prisão (e, consequentemente, a sua legalidade) vinculada à presença e acompanhamento de representante da Ordem dos Advogados do Brasil.

Vale resgatar, então, quais são os crimes tidos por inafiançáveis no ordenamento jurídico pátrio, cujas previsões normativas exsurgem da própria Constituição Federal (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV), a saber: i) racismo; ii) tortura; iii) tráfico de drogas; iv) crimes hediondos; v) terrorismo; vi) ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

O desacato – salta mesmo aos olhos mais incautos – não figura do rol de crimes viabilizadores da prisão em flagrante delito do advogado, por motivo ligado ao exercício profissional.

O problema se agrava, todavia, quando os olhos não são incautos, mas perfidamente truculentos, violentos e inquisitórios.

No caso em resgate, a prisão do causídico é indubitavelmente ilegal, por violadora de prerrogativas profissionais do advogado e, portanto, convidaria a autoridade policial responsável à não ratificação da “voz de prisão” (seja pela natureza de “menor potencial ofensivo” do crime de desacato, nos termos dos art. 69, caput e parágrafo único, da Lei n.º 9.099/95; seja por interpretação a contrario sensu do art. 304, § 1º, do CPP).

Aliás, eventualmente lavrado o respectivo Termo Circunstanciado de Ocorrência (se assim caminhasse a interpretação da autoridade policial), dever-se-ia “aproveitar a empreitada” e, desde já, lavrar-se outro em relação ao crime de abuso de autoridade (art. 3º, “a” e “j”, da Lei n.º 4.898/65) evidentemente cometido pelos milicianos, tomando-se a termo a respectiva representação da (ora) vítima “presa”, isto é, o advogado; sem prejuízo da eventual instauração de inquérito policial para investigar a potencial prática, pelos mesmos agentes estatais, do crime de prevaricação (art. 319, CP).

Nos tempos de agora, em que a velocidade das comunicações opera em tempo real, a notícia já não é nova. Todavia, o recrudescimento de uma odiosa “criminalização” da advocacia convida sempre – e mais uma vez – a conservação candente da consciência democrática e republicana que deve orientar a atuação desta categoria que exerce, nos dizeres do Constituinte, “função essencial à administração da justiça”.

A truculência autoritária pode, momentaneamente, quebrantar o corpo, mas a altivez de um espírito corajoso haverá sempre de subjugar a força bruta.

Sem advocacia livre não há possibilidade de cidadania e, em nome desta liberdade, é que empunhamos nossas invencíveis armas: a razão, a palavra, a coragem moral e a consciência democrática.


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André Coura

Advogado criminalista

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