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A provisionalidade das medidas cautelares

Por Henrique Saibro

Dando seguimento aos estudos da principiologia cautelar no processo penal, o princípio da provisionalidade está previsto nos §§ 4º e 5º do artigo 282 do CPP[1], partindo do ideal de que as prisões cautelares são provisionais[2], pois estão umbilicalmente ligadas a uma situação fática. Portanto, uma vez desaparecida a hipótese ensejadora do decreto cautelar, nesse instante a prisão não apenas merece, senão deve ser revogada.

Assim, as segregações preventivas estão atreladas, vedadas exceções, ao requisito de sua decretação – fumus commissi delicti – e ao fundamento da medida – periculum libertatis.

Aliado ao fato de que as prisões preventivas são circunstanciais, podendo sempre ser canceladas ou substituídas, o presente tema também é denominado como princípio da revogabilidade, aplicando-se, segundo BONFIM, a cláusula rebus sic stantibus (enquanto as coisas permanecerem como estão).[3]

Portanto, trata-se de uma garantia valiosa ao imputado que, diante de uma situação modificativa favorável, capaz de afastar os indícios de crime e/ou de perigo em manter-se solto, a liberdade deve prevalecer sobre o seu enclausuramento preventivo. É justamente o que MANZINI[4] defendia, pois se os indícios que “en el momento de emitirse el mandato o la orden de captura parecían suficientes, resultan, en cambio, insuficientes por ulteriores indagaciones, debe cesar la custodia preventiva”.

Exemplificando: Júlio restou incurso na denúncia pelo cometimento do crime previsto no artigo 121 do CP (homicídio). Após ser decretada a sua prisão preventiva em virtude do “risco à ordem pública”, pois o denunciado seria uma ameaça ao bom convívio social[5], sobrevieram fortes indícios, através de uma testemunha ocular, de que o réu atuou em legítima defesa[6]. Convencido o juiz de que já não existe o fumus commisi delicti, “evidentemente não deve ele esperar a sentença para relaxar prisão decretada”.[7]

Sem embargo, não se deve olvidar que ao mesmo tempo em que a provisionalidade é favorável ao investigado/réu, pode tal característica, desde que novamente presentes circunstâncias fáticas novas, mas agora vindas em seu desfavor, gerar consequências graves ao imputado, conforme conceitua o § 4º do artigo 282.

E a crítica a tal redação não deve passar por batida; não em virtude da possibilidade de os requisitos e fundamentos da prisão preventiva serem tão mutáveis a ponto de vir em desfavor do réu, mas sim pela possibilidade de ativismo do magistrado nesse sentido, pois o referido parágrafo chancela expressamente a atuação de ofício do juiz, podendo, inclusive, decretar uma prisão preventiva sem a necessária provocação do Ministério Público.

Segundo Carnelutti[8], o primeiro cuidado que o juiz deve ter ao instruir um processo é formar “ante todo, un plan, aun cuando sea simple y elemental, de trabajo”, afirmando que nenhum construtor, “antes de proveer a los medios para la construcción, no lleve a cabo, o al menos, no esboce, um proyecto de la misma”.

Ora, permitir que o julgador atue de ofício em desfavor do réu, a ponto de substituir uma medida cautelar diversa para uma grave prisão preventiva, nada mais é do que o esboço do magistrado de um plano de condenação ao imputado; uma preparação a uma futura segregação, só que lá adiante, definitiva. Um verdadeiro absurdo possibilitado pelo legislador.

Afinal, LOPES JR., partindo da mesma indignação, sustenta que o juiz ativista primeiro decide e só depois vai atrás dos fatos a ponto de justificar a sua decisão (“que na verdade já foi tomada”).[9]

Portanto, partindo do ideal de que o nosso sistema processual é “misto”[10] – inquisitivo na fase extrajudicial e acusatório na fase processual[11] –, qualquer atuação de ofício do julgador deveria ser considerada ilegal, pois o princípio acusatório, que se diz presente em juízo, estaria afunilado de vez com tal hipótese. Nos moldes dos ensinamentos de OLIVEIRA[12], o fato de o inquérito policial acompanhar a denúncia e seguir anexado ao processo penal não legitima a violação da imparcialidade do julgador ou a violação ao devido processo legal.

Logo, antes de ser feita qualquer medida coercitiva durante a persectio criminis, a principiologia cautelar deve estar clara no exercício da jurisdição de qualquer magistrado. A partir dela, é possível constatar que elas são ligadas a um fato que, quando modificado ou desaparecido, enseja a reapreciação dos suportes legitimadores de tais medidas, possibilitando a substituição ou a revogação da antiga decisão. Isso, bem dizer, trata-se da provisionalidade do instituto cautelar.

__________

[1] Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: […]

§ 4o No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva (art. 312, parágrafo único).

§ 5o O juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem.

[2] LOPES JÚNIOR, Aury. O Novo Regime Jurídico da Prisão Processual, Liberdade Provisória e Medidas Cautelares Diversas. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 23.

[3] BONFIM, Edilson Mougenot. Reforma do Código de Processo Penal: comentários à Lei n. 12.403, de 4 de maio de 2011: prisão preventiva, medidas cautelares, liberdade provisória e fiança. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 21.

[4] MANZINI, Vicenzo. Tratado de Derecho Procesal Penal. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa – América, 1952. p. 652. 3v.

[5] Essa decisão poderia ser remedida através de habeas corpus, sob o escopo de relaxar a prisão preventiva, pois a fundamentação da segregação cautelar restou genérica e impessoal (BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. HC. 70047328877, 5ª Câmara Criminal. Relator Desembargador Luís Gonzaga da Silva Moura. Porto Alegre, publicado em 01-03-2012. Lex: Jurisprudência do TJ/RS).

[6] “[…] quando em um processo por homicídio se estabeleceu a certeza de que o imputado, com um tiro de pistola, tenha matado um homem, não se sabe, todavia, dele tudo o que é necessário saber para dever condená-lo. O homicídio não é somente ter matado, senão ter querido matar” (CARNELUTTI, Francesco. As Misérias do Processo Penal. São Paulo: Editora Pillares, 2009. p. 72).

[7] TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 89.

[8] CARNELUTTI, Francesco. Lecciones Sobre el Proceso Penal. Buenos Aires: Bosch Y Cía. Editores, 1950. p. 163. 2v.

[9] LOPES JÚNIOR. Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 5.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 80).

[10] Aury Lopes Jr. aduz que o nosso sistema processual deve ser conceituado como (neo)inquisitório, pois, em que pese dito como misto, “o ponto nevrálgico é a identificação de seu núcleo”, sendo inquisitivo na sua essência, pois possibilitado ao juiz a gestão da prova (idem. p. 74 e 76).

[11] Ao diferenciar o sistema inquisitório do acusatório, Ada Pellegrini Grinover sustenta que “no primeiro, as funções de acusar, defender e julgar são atribuídas a órgãos distintos, enquanto no segundo as funções estão reunidas e o inquisidor deve proceder espontaneamente” (A Marcha do Processo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 78).

[12] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 13.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 14.

HenriqueSaibro

Henrique Saibro

Advogado. Mestrando em Ciências Criminais. Especialista em Ciências Penais. Especialista em Compliance.

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