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A punibilidade concreta como elemento do conceito de crime

Dentro da dogmática penal muitos teóricos tentaram preencher o vácuo conceitual do que haveria de ser considerado crime. Nessa empreitada surgiu, ainda no século XVI, a teoria quadripartida do crime, com o Tiberii Deciani, na famosa obra tractatvs criminalis, que teve por objetivo conceituar o que venha a ser o fato criminoso.

Elemento do conceito de crime

Historicamente, o conceito de crime foi interpretado de diferentes formas, por diferentes escolas e diferentes teorias. A primeira, minoritária entre os pensadores da teoria do delito, foi a teoria bipartite, que entendia ser o crime composto por duas fases, sendo elas a fase da tipicidade e a fase da ilicitude.

Do mesmo modo, mais tarde, veio a surgir a teoria tripartite que, por sua vez, é a teoria majoritária entre os teóricos do direito penal. A tese tripartite afirma que a definição do conceito de crime consiste no preenchimento de três elementos, sendo eles: a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade.

Importa destacar que embora a teoria tripartite seja aceita quase que unanimemente em todo o mundo, existe outra teoria que é crucial para o entendimento deste artigo. Tal teoria ficou conhecida como a teoria ‘quadripartite’ ou ‘quadripartida’, na qual o crime é considerado como sendo todo fato típico, antijurídico, culpável e punível. Embora pouco trabalhada no Brasil, a teoria quadripartida foi defendida por autores de relevância mundial, como Francisco Muñoz Conde e Winfried Hassemer.

Posteriormente o conceito foi retrabalhado à luz dos escritos do Samuelis Boehmer, na obra Elementa iusisprudentia criminalis, em que o delito foi definido como ‘ação ou omissão espontânea, contrárias à lei, cujo cumprimento é imposto mediante a cominação da pena

Naturalmente o conceito quadripartido do crime precisou ser readaptado ao pragmatismo dos novos tempos, tendo sido remodelado pelo Karl Binding, que definiu o delito como um ilícito penal culpável e punível, e esclarece que, nessa mesma estrutura, o ilícito penal culpável somente é denominado como delito quando também é punível.

Muito embora tenham sido elaboradas outras formulações teóricas alternativas, a teoria quadripartida evoluiu com o tempo até ser utilizada pelo Von Liszt, para quem o conceito do delito seja a ação antijurídica, culpável e ameaçada por pena.

O fato é que durante toda a evolução histórica da teoria do delito, a punibilidade era considerada em sua configuração abstrata, como definição de uma pena em uma norma estrutural e secundária.

Segundo o Andreas Eisele, o

aspecto da punibilidade considerado para a composição do conceito é a expressão abstrata da punibilidade, que consiste na previsão legal de uma pena, como possível consequência jurídica, devida pela eventual prática de um ilícito penal culpável.

Fato é que, historicamente, a teoria quadripartida foi “deixada de lado” pela maioria dos teóricos, pois a punibilidade não conseguiria alcançar um nível de compatibilidade e coerência suficiente para integrar o conceito de crime, tanto no âmbito teórico quanto prático.

O principal motivo da expulsão da punibilidade como critério do conceito de crime se deu por causa de uma suposta “tautologia” alegada por seus opositores. Um desses opositores foi o Max Ernst Mayer, que considerava que a inclusão da punibilidade abstrata no conceito de crime seria pleonástica

Mezger, por exemplo, entendia por crime a ação tipicamente antijurídica e culpável, e formulou tal pensamento sob influência das considerações do Mayer, que não incluía a punibilidade no conceito de crime, pois entendia que o próprio delito seria definido como uma ação punível e, segundo o autor, alocar a punibilidade no conceito seria redundante.

Ao que parece, Mayer não considerou um dado importante na dinâmica da dogmática criminal, que é o próprio conceito de delito como “fato punível”. Ora, nesses moldes um fato punível não seria conceitualmente punível, pois a punibilidade não estaria presente no seu próprio conceito.

Nessa mesma linha, autores como o Rodriguez Devesa e Serrano Gómez  tendem a discordar da existência dessa “tautologia” presente na integração da punibilidade ao conceito de crime, pois, segundo os autores, não existe um pleonasmo na inclusão da punibilidade como elemento do conceito do fato punível. Segundo os autores, essa objeção somente seria adequada se todas as condutas tipicamente antijurídicas e culpáveis fossem sancionadas com uma pena preestabelecida e fixada por lei.

E, como explica o Vicenzo Manzini, ainda que a definição do delito como fato punível seja redundante, essa redundância seria necessária, pois o que define o delito é o ordenamento jurídico, e essa definição tanto é estabelecida mediante a especificação da incidência da norma, quanto pela cominação da sanção. Assim, a tautologia não é um defeito, mas sim uma característica essencial do conteúdo conceitual.

A punibilidade como critério integrador do conceito do crime trata-se de um requisito da própria precisão do conceito. E, conforme a dogmática moderna, a precisão configura garantia frente ao princípio da legalidade.

No mesmo diapasão, afirma Polaino Navarrete que a punibilidade deve necessariamente integrar a estrutura da categoria jurídica denominada como fato punível, pois se o fato não fosse punível, não seria crime.

Giulio Battaglini entendia que a não inclusão da punibilidade no conceito de delito levaria à admissão de um ‘’delito não punível’’ e tal afirmação seria uma contradição puramente ilógica.

Ottorino Vannini dizia que não existe um fato jurídico sem uma correspondente potencialidade de produção de consequências jurídicas, a partir do qual seria inconcebível a constituição de um delito em relação ao qual não existisse a possibilidade real de aplicação de uma pena. Sem a punibilidade de um fato não existe um delito. Um fato sem consequências jurídicas não é um fato jurídico, e para ser delito, o fato precisa ser, necessariamente, jurídico.

Nisso consiste a necessidade lógico-dogmática da inclusão da punibilidade concreta no conceito de crime, a revelia de não fazê-lo, admita-se a existência de um delito (fato punível) não punível.

REFERÊNCIAS

DECIANI, Tiberii. Tratactvs Criminalis

BOEHMER, Samuelis. Elementa iusisprudentia criminalis
LISTZ, Franz von. La idea de fin en Derecho Penal.

BALTAZER, Júnior. Crimes Federais.

DEVESA, Rodríguez. Derecho Penal Espanhol

MANZINI, Vincenzo. Tratado de Derecho penal

NAVARRETE, Polaino, Miguel. Criminalidad Actual y Derecho Penal

BATTAGLINI, Giulio. Diritto penale: parte generale

VANNINI, Ottorino. Manuale Di Diritto Penale Parte Generale

EISELE, Andreas. A Punibilidade no Conceito de Delito

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