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A que veio a Lei 13.245/2016?


Por Ruchester Marreiros Barbosa


Devemos, antes de adentrar nos apontamentos e às críticas sobre a Lei 13.245 que entrou em vigor em 13 de janeiro de 2016, que alterou o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, lei 8.906/94, em seu art. 7º, XIV e XXI, nos questionarmos o porquê ainda no Brasil é necessário se legislar para se consagrar garantias que são imanentes a um Estado de Direito.

Em linhas gerais a novatio legis traz como conteúdo epistêmico o direito de acesso aos autos da investigação criminal por uma defesa técnica, caracterizando mais uma proteção (legislativa) ao princípio já consagrado em nossa Carta Política em seu art. 5º, LVII, qual seja a garantia e o direito da não auto incriminação ou nemu tenetur se detegere.

A garantia de acesso aos autos da investigação deveria ser um corolário lógico do direito de defesa ou do devido processo legal em seu aspecto substancial, mas na prática forense, são comuns manobras hermenêuticas (se é que poderíamos denominar de hermenêutica) abusivas por parte das agências criminalizantes (delegados, magistrados e promotores) frontalmente contrárias a lógica democrática, fruto do apego a lei e da escravidão positivista.

Parafraseando Marcelo Semer (veja aqui):

“Desde a emergência do Estado Social e dos novos instrumentos que a ele se agregaram, como as Constituições descritivas, o paradigma da dignidade humana, o reconhecimento do poder normativo dos princípios, os sistemas internacionais de proteção de direitos humanos, o perfil do juiz apolítico envelheceu. Sua função agora é, especialmente, a de garantidor dos direitos inscritos na Constituição –a jurisdição é inafastável, bem como a aplicação de normas de direitos humanos, que transcendem inclusive a soberania”

Onde se lê no texto de Semer, “juiz”, encaixa-se perfeitamente, “delegado” ou “promotor”, claro, no desempenho funcional de cada qual, como agentes do Estado de Direito agem sob a perspectiva da lente ex parte populi e, portanto, servem aos destinatários das garantias constitucionais e não o contrário, sob pena de se humanizar o Estado e coisificar a pessoa, e pelo que consta, o investigado ainda é pessoa. A razão não é outra senão a de que quem tem poder tende a abusar dele. Nasce daí a necessidade de autocontenção, de limites de atuação do Estado.

Trata-se de uma garantia fundamental na qual nosso sistema (se é que temos um) permite um diálogo das fontes segundo aos quais já nos permitiria concluir que o acesso aos autos da investigação criminal é mais que um direito do advogado é uma garantia do investigado e isso não deveria, ainda hodiernamente, ser objeto de controvérsia. O debate sobre a existência ou não de contraditório na investigação criminal não suprime a necessidade imediata de se desenvolver uma regra de um jogo processual na investigação criminal.

Enfim, a lei surge porque o apego ao positivismo não permite um Direito de construção com uma hermenêutica prospectiva, mas um Direito de repetição de exegese retrospectiva, de manutenção de tudo como está, que contamina até mesmo a mais alta corte de nosso país, na qual preconiza a premissa de que o art. 5º, LV da CR somente seja aplicável ao processo judicial e ao administrativo, no entanto, não obstante reconhecerem a natureza administrativa da investigação criminal, não lhe atribuem caráter processual, negando, com frequência, garantias inerentes ao jogo processual, trazendo para a investigação criminal um não-processo, ainda que administrativa a sua natureza, e, consequentemente, a lógica do não-Direito, negando-se defesa e apontamentos de nulidades nesta seara, operando-se uma fratura entre garantias e a sua efetiva realização, que vem ocorrendo de forma seletiva, fazendo nascer um ambiente juridicamente construído sob o paradigma de um Estado de exceção (AGAMBEM, 2004, p. 88) na investigação criminal.

Não restam dúvidas de que em nenhum país de democracia plena se abriu mão da investigação criminal como filtro a acusações infundadas, razão pela qual, a dificuldade dogmática brasileira em consolidar uma tradição de respeito a garantias individuais na investigação criminal se dá por razões culturais e não por ausência de normas jurídicas, no entanto, a verificação seletiva de efetivação delas leva o legislador a voltar os olhos para a necessidade de uma quebra de paradigmas, na qual apontamos como um passo, ainda que tímido, de se fazer incidir uma teoria da investigação criminal (PEREIRA, 2010, pp. 173-175) com categorias da teoria do processo como garantia, consequentemente a adoção de uma teoria das nulidades.

Podemos começar aplicando a que já temos, ainda que não seja adequado.

Evidentemente que uma alteração diminuta, como ocorreu, pela lei 13.245/16 não atribuirá valência suficiente para uma mudança tão profunda como insinuamos no parágrafo anterior, mas estamos convictos que hodiernamente esta lei se apresenta como um grito por mudanças mais significativas na investigação criminal em uma democracia.

A lei deve ser lida com vistas a uma interpretação prospectiva. Afinal, algumas disposições da lei não alteram algumas interpretações já realizadas, mas outras, em nosso ponto de vista, traduz um passo pequeno, mas significativo, à aplicação de uma teoria das nulidades à investigação criminal, consequentemente, o repensar sobre a natureza jurídica desta, como já o fez o novo “codigo procesal penal de la Nación Argentina” (veja aqui) e que inclui a investigação criminal como etapa do procedimento ordinário do processo de conhecimento, alterando o paradigma do processo como relação jurídica, elevando a uma categoria de processo como uma garantia constitucional, na qual fizemos uma pequena diferença de investigações previstas no diploma argentino em artigo publicado aqui mesmo em nossa coluna (veja aqui).

A doutrina que prega a cultura do ódio ao inquérito policial, quer a todo momento desqualificar esta etapa com o profícuo propósito de se apoderar dele, como ocorre com o debate sobre a possibilidade de órgãos que não estão previstos na Constituição realizarem investigação criminal, não passa de um projeto de poder simplesmente.

Ainda assim, em nenhum caso na seara da multiplicidade de órgãos investigativos, não há controvérsias de que uma etapa que anteceda o julgamento do mérito seja necessária para que não se inaugure pretensões acusatórias infundadas. Até mesmo o acusador sabe que para acusar precisa primeiro investigar para ter maior chance de êxito condenatório.

A verdade interessa a todos, inclusive ao Estado. A sociedade não tem interesse em processar inocente e deixar o verdadeiro culpado impune, portanto a evolução teórica gira em torno da construção da Verdade e não em torno da existência ou não de um procedimento investigatório. Seja o nome que ele possuir, inquérito policial, procedimento de investigação criminal, termo circunstanciado, auto de investigação de adolescente pela prática de ato infracional etc, o interesse está em construir uma verdade ética que respeite a dignidade da pessoa humana.

A melhor Verdade é aquela com maior capacidade de preservar a cadeia de custódia da prova, e para aquelas provas irrepetíveis, não restam a menor dúvida que sua demonstração deve ser realizada sobre a paridade de armas, ou seja, sob vistas da defesa do investigado e daquele que atua com vistas a uma pretensão acusatória.


REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da Investigação Criminal. Uma introdução jurídico-científica. Coimbra: Almedina, 2010.

_Colunistas-Ruchester

Ruchester Barbosa

Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal. Delegado.

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