A quebra da cadeia de custódia resultante na contaminação da prova e do magistrado
A quebra da cadeia de custódia resultante na contaminação da prova e do magistrado
A cadeia de custódia, regulamentada pela Lei 13.964/2019, com inclusão do artigo 158-A ao 158-F no Código de Processo Penal, diz respeito a todos os procedimentos utilizados para documentação da história cronológica dos vestígios, a fim de que seja conhecida sua posse e manuseio, que deve ocorrer com o detalhamento de todos os agentes envolvidos, desde a identificação até o descarte.
Uma vez que o processo penal busca reconstruir fatos históricos – haja vista a ocorrência no passado – a gestão da prova institui a espinha dorsal do processo penal na busca pela verdade. Dessa forma, o conceito de prova está vinculado ao de atividade encaminhada a conseguir o convencimento psicológico do juiz (ARAGONESES ALONSO, 1984, p. 251), ou seja, o fator determinante é o convencimento do julgador segundo as regras do devido processo penal.
De acordo com a Constituição Federal, art. 5º, inciso LVI, “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”. Ademais, o Código de Processo Penal, em seu artigo 157, complementa a norma retromencionada, esclarecendo que “são inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais”.
Nas palavras de Aury Lopes Jr. (2019, p. 483), a prova ilícita viola uma regra de direito material ou até mesmo a Constituição no momento de sua coleta fora do processo, gerando uma violação de intimidade, privacidade ou dignidade. Ademais, situa-se no plano da inadmissibilidade, o que impede a sua inclusão ou manutenção no processo, bem como a sua valoração.
Dessa forma, ao passo que a cadeia de custódia se ocupa em documentar a história cronológica dos vestígios, a sua quebra resulta na perda destes como fontes de prova, vez que o elemento se torna ilícito e a ilicitude resulta na inadmissibilidade.
Tanto a ausência da cadeia de custódia quando o rompimento de alguma das sequências constantes na atualização legislativa (CPP, art. 158-B, inciso I ao X), resultam no afastamento a verdade dos fatos e consequente comprometimento dos elementos probatórios, impossibilitando a defesa do acusado em diversos aspectos.
Ademais, se faz necessária o debruçamento sobre o estudo da contaminação de uma prova ilícita sobre as demais. Nos moldes do Código de Processo Penal em seu artigo 573, parágrafo primeiro, quando uma prova é considerada ilícita, deve-se haver a análise de eventual contaminação gerada por esta sobre outras provas. Nesse sentido é o parágrafo primeiro do artigo 157 da mesma disciplina legal: “são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”.
Nos ensinamentos de Aury Lopes Jr. (2019, p. 492), entende-se que o vício se transmite a todos os elementos probatórios obtidos a partir do ato maculado, literalmente contaminando-os com a mesma intensidade, devendo ser desentranhado o ato originalmente viciado e todos os que dele derivem ou decorram, pois igualmente ilícita é a prova que dele se obteve.
Assim, diferentemente do que ocorre na prática, em que deve ser demonstrada a contaminação para que a prova seja desconsiderada, as provas decorrentes de uma prova ilícitas deveriam ser anuladas por derivação, ocorrendo o oposto apenas na hipótese de demonstração inequívoca de independência entre elas (ausência de nexo de causalidade).
No que se refere à contaminação do juiz, a Lei 13.964/2019 adicionou o parágrafo quinto ao artigo 157 do Código de Processo Penal, com a mesma redação anteriormente utilizada no parágrafo quarto (vetado), voltando a ser reconhecida a impossibilidade de proferimento de sentença ou acórdão pelo juiz que teve contato com a prova inadmissível, haja vista a necessidade de proteção da imparcialidade e a busca pela paridade de armas, ainda tão utópica.
Neste ponto, o desentranhamento da prova ilícita dos autos processuais não se mostra eficiente quando a ação será processada e julgada pelo magistrado que teve contato com a prova inadmissível e formou sua convicção acerca dos fatos com base nesta, estando contaminado e devendo, consequentemente, também ser “desentranhado” do processo.
Isso porque, a exclusão da prova ilícita apresenta efetividade apenas no campo físico, haja vista a impossibilidade de utilização, ao menos de forma expressa, como fundamento da decisão; todavia, a garantia do impedimento da utilização e valoração das provas ilícitas deve refletir também no campo psíquico, ou seja, nas convicções subjetivas do magistrado.
A lei proíbe que o juiz fundamente a sua decisão em provas ilícitas; entretanto, evidentes são os reflexos do conhecimento do conteúdo das provas inadmissíveis na convicção do magistrado, que certamente será abalada, uma vez que, mesmo que as evidências tenham sido excluídas do processo, permanecerão na memória.
O conceito trazido na obra de Lídia Reis (2013) esclarece que existe uma série de fatores psicológicos, conscientes e inconscientes, com poder de influência sobre o juiz, afetando o ato de julgar. Isso porque, é uma ilusão considerar como possível uma “exclusão mental” do que se sabe, fruto de uma visão positivista, com consequente julgamento técnico, como se o ato de julgar fosse uma atividade mecânica.
Para além do texto legislativo, acertada é a posição de Eduardo José (2020) quando esclarece não ser suficiente a exclusão do juiz apenas no momento da sentença. Apesar da redação do parágrafo estabelecer apenas a impossibilidade de proferimento de sentença ou acórdão, são patentes os atos de imparcialidade que podem decorrer da manutenção do juiz no processo durante a sua instrução, após o conhecimento do conteúdo da prova ilícita, podendo perseguir o mesmo resultado prático de reinclusão desta no processo, vez que tal experiência afetar a sua convicção, ainda que involuntariamente – diante da ausência de controle sobre o inconsciente – que afeta diretamente sua ideia subjetiva acerca do caso.
Diante do exposto, espera-se que o vestígio adulterado tenha sua ilicitude reconhecida na primeira oportunidade, com imediato desentranhamento e, além disso, mostra-se indispensável a análise detalhada dos autos, a fim de que nenhum resquício de contaminação permaneça no processo, diante do grande prejuízo ao devido processo legal que decorreria da manutenção ou futura inclusão de elementos derivados da prova ilícita e, por fim, para que tudo isso seja plenamente efetivado, necessária se faz a substituição do julgador no momento do desentranhamento das provas ilícitas, a fim de que seja preservada a imparcialidade.
REFERÊNCIAS
ARAGONESES ALONSO, Pedro. Instituciones de Derecho Procesal Penal, 5. ed. Madrid: Editorial Rubí Artes Gráficas, 1984.
______. LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
PRADO, Lídia Reis de Almeida. O Juiz e a Emoção. Aspectos da Lógica da Decisão Judicial. 6.ed. Campinas: Millennium, 2013.
COSTA, Eduardo José da Fonseca. Contaminação Psicológica por Prova Inadmissível [CPP, art. 157, §5º]. Empório do Direito, São Paulo, n 47, 03 fev. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2020.
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