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A quem compete o processo e julgamento dos crimes contra o sistema financeiro?


Por Bruno Augusto Vigo Milanez


A regra do art. 109, VI, da CR/88, fixa a competência da Justiça Comum Federal para o processo e julgamento dos crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, desde que haja previsão expressa em lei.

Assim, poder-se-ia concluir em todas as hipóteses nas quais não houver previsão específica na legislação infraconstitucional a atrair a competência da Justiça Federal para o julgamento dos crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, serão estes julgados pela Justiça Estadual.

A conclusão não é acertada, dado ser possível que a lei definidora do crime contra o sistema financeiro ou a ordem econômico-financeira não verse sobre a competência da Justiça Federal, porém o delito afete um bem, serviço ou interesse da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Nestas hipóteses, mesmo que não haja previsão na legislação infraconstitucional – como exige o art. 109, VI, da CR/88 -, o delito será julgado na Justiça Federal, por incidência da regra do art. 109, IV, da CR/88.

Em face de tal motivo, a definição da competência em relação aos crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira deve levar em consideração uma análise conjugada dos incisos IV e VI, do art. 109, da CR/88, nos seguintes moldes:

(a) Inicialmente, deve-se indagar se a lei que tipifica o crime versa sobre a competência da justiça federal para o seu processo e julgamento. Caso a resposta seja positiva, o delito estará submetido a processo e julgamento perante a Justiça Federal, por força da regra do art. 109, VI, da CR/88;

(b) Sendo a primeira resposta negativa, deve-se ainda indagar se o crime afetou algum bem, serviço ou interesse da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas. Caso a resposta seja afirmativa, a competência restará fixada na Justiça Federal, por incidência da regra do art. 109, IV, da CR/88. Sendo a resposta negativa, a competência restará fixada na Justiça Estadual.

Este posicionamento é adotado pela jurisprudência mais recente do STF (RExt 502.915). Há, contudo, precedentes anteriores afirmando a competência da Justiça Federal para o processo e julgamento dos crimes contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira exclusivamente a partir da regra do art. 109, VI, da CR/88, elidindo a competência Federal quando a lei não dispõe nesse sentido, ainda que o delito seja praticado nas circunstâncias do art. 109, IV, da CR/88 (RExt 198.488).

A posição que parte de uma análise conjunta dos incisos IV e VI do art. 109, da CR/88, parece mais a mais correta, mormente por inexistir relação de exclusão entre os incisos. Em outras palavras, inexiste qualquer espécie de prejudicialidade entre o art. 109, IV e VI, da CR/88.

A partir destes pressupostos, possível analisar especificamente as leis que tipificam delitos contra o sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, definido, em cada caso, a competência Federal ou Estadual para o processo e julgamento dos delitos.

A Lei 4.595/64, que na regra do art. 34, I, § 1º, tipifica o crime de concessão de empréstimos vedados[1], não contém qualquer disposição legal que verse sobre a competência da Justiça Federal (aliás, quando da entrada em vigência desta lei, a Justiça Comum Federal sequer existia). Ademais, o delito nela tipificado não afeta bens, serviços ou interesses da União, suas entidades autárquicas ou empresas públicas, motivo pelo qual a jurisprudência reconhece que estes crimes são processados e julgados na Justiça Comum Estadual (STJ – RHC 3.550).

Situação mais singela diz com a Lei 7.492/86, cujo art. 26 dispõe que “a ação penal, nos crimes promovidos nesta Lei, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante a Justiça Federal.” Não há dúvidas, portanto, que os crimes contra o sistema financeiro tipificados nesta última lei estão submetidos a processo e julgamento perante a Justiça Comum Federal.

No contexto dos crimes contra o sistema financeiro nacional, deve-se ainda analisar a Lei 6.385/86, que tipifica os crimes contra o mercado de capitais. Em que pese a existência diversas correntes doutrinárias a respeito do bem jurídico tutelado nestes delitos, não se pode negar que o sistema financeiro integra o núcleo de proteção da lei penal, mormente levando-se em consideração que, por força da regra do art. 192, da CR/88, o mercado de capitais integra o sistema financeiro nacional.

Seguindo-se este pressuposto, uma análise da referida lei evidencia a inexistência de qualquer dispositivo a atrair a competência da Justiça Comum Federal para o processo e julgamento dos delitos nela tipificados. Porém, muito embora a Lei 6.385/86 não defina expressamente a competência federal para o processo e julgamento dos delitos contra o mercado de capitais, é admissível que tais delitos afetem um interesse específico da União.

Esta conclusão se estabelece a partir do art. 21, VIII, da CR/88, que estabelece a competência administrativa privativa da União para “administrar as reservas cambiais do País e fiscalizar as operações de natureza financeira, especialmente as de crédito, câmbio e capitalização, bem como as de seguros e previdência privada“.

É induvidoso, portanto, que os crimes praticados em face do mercado de capitais podem afetar interesses específicos da União, consoante a regra do art. 21, VIII, da CR/88. Em conclusão, os delitos contra o mercado de capitais são processados e julgados na Justiça Federal, quando se verificar que o ilícito penal afetou bem, serviço ou interesse da União (art. 109, IV, da CR/88). É essa a posição do STJ:

“PENAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. CRIME CONTRA O MERCADO DE CAPITAIS. INTERESSE DA UNIÃO NA HIGIDEZ, CONFIABILIDADE E EQUILÍBRIO DO SISTEMA FINANCEIRO. LEI 6.385/76, ALTERADA PELA LEI 10.303/01. AUSÊNCIA DE PREVISÃO DE COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 109, IV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. APLICAÇÃO. RELEVÂNCIA DA QUESTÃO E INTERESSE DIRETO DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. O fato de tratar-se do sistema financeiro ou da ordem econômico-financeira, por si só, não justifica a competência da Justiça Federal, embora a União tenha interesse na higidez, confiabilidade e equilíbrio do sistema financeiro. 2. A Lei 6.385/76 não prevê a competência da Justiça Federal, porém é  indiscutível que, caso a conduta possa gerar lesão ao sistema financeiro nacional, na medida em que põe em risco a confiabilidade dos aplicadores no mercado financeiro, a manutenção do equilíbrio dessas relações, bem como a higidez de todo o sistema, existe o interesse direto da União. 3. O art. 109, VI, da Constituição Federal não tem prevalência sobre o disposto no seu inciso IV, podendo ser aplicado à espécie, desde que caracterizada a relevância da questão e a lesão ao interesse da União, o que enseja a competência da Justiça Federal. 4. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo Federal da 2ª Vara Criminal da Seção Judiciária do Estado de São Paulo, um dos suscitados.” – g.n. – (STJ – CC 82.961, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJe 22.6.2009)

Os crimes contra a ordem econômico-financeira estão tipificados nas Leis 8.137/90 (crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo) e 8.176/91 (crimes contra a ordem econômica).

Na Lei de Crimes Tributários inexiste qualquer previsão específica expressa que fixe a competência para o processo e julgamento dos delitos nela tipificados perante a Justiça Comum Federal, o que pode conduzir à equivocada conclusão de os crimes tributários, indistintamente, são julgados e processados na Justiça Comum Estadual.

A identificação da erronia da conclusão perpassa breve análise do Sistema Tributário Nacional. Um simples passar de olhos pela regra do art. 145, caput e incisos, da CR/88, evidencia que tanto a União como os Estados e Municípios podem instituir impostos, taxas e contribuições. Em resumo, é possível afirmar, a partir do texto constitucional, a existência de tributos federais, estaduais e municipais.

Sendo assim, se a prática de um crime tributário envolver tributo federal, a competência para o processo e julgamento de delito será da Justiça Comum Federal, porém não em face da regra do art. 109, VI, da CR/88, mas sim em decorrência do art. 109, IV, da CR/88, pois neste caso o crime tributário é praticado em detrimento de um bem ou interesse da União.

Em contrapartida, se o crime tributário envolver tributo estadual ou municipal, a competência para o processo e julgamento do delito será da Justiça Comum Estadual, como se pode depreender do recentíssimo precedente abaixo.

Outro ponto de extremo relevo na atualidade diz com a fixação da competência criminal em relação aos crimes de lavagem de dinheiro. Contudo, em decorrência da complexidade do tema e da necessidade de um estudo um pouco mais completo, esse tópico merecerá um artigo específico. Aguardem, portanto, as próximas colunas!


NOTAS

[1] Há na doutrina quem sustente que o art. 34 da Lei 4.595/64 foi revogado pela Lei 7.492/86, que na regra do art. 17 disciplinou o mesmo delito e, portanto, revogou a regra pretérita. Neste sentido, BITENCOURT, Cezar Roberto; BREDA, Juliano. Crimes contra o sistema financeiro nacional & contra o mercado de capitais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 185-6. Contudo, há precedentes do STJ (RHC 3.550) e do STF (RE 198.488) posteriores à Lei 7.492/86, reconhecendo que ainda permanecem vigentes tanto o art. 34, I, § 1º, da Lei 4.595/64 como o art. 17, da Lei 7.492/86, dado que os tipos penais preveem a vedação de empréstimos a pessoas distintas.

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Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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