A recomendação 62/2020 do CNJ e o uso do HC coletivo
A recomendação 62/2020 do CNJ e o uso do HC coletivo
Por Ana Laura Bernadelli Nunes e Vinicius de Camargo
A pandemia de COVID-19 já chegou aos cárceres brasileiros. Segundo dados do DEPEN (2020), atualizados até 13 jul. 2020, já se têm 1.835 casos suspeitos, 5.794 casos confirmados e 65 óbitos, em um cenário que foram testados até então 3% da população prisional. Há de se dizer ainda que os dados do painel de monitoramento aparentam estar defasados, pois, a título de exemplo, já se noticiam três mortes confirmadas em presídios mineiros (PIMENTEL e CHIMICATTI, 2020), enquanto o painel mostra apenas uma.
Nesse contexto, visando a reduzir os riscos de contaminação da população prisional, que vive em ambiente propício para maior disseminação da doença, devido ao ambiente insalubre e superlotado, foi editada pelo CNJ a recomendação 62/2020, com medidas preventivas e desencarceradoras, tendo como escopo o sistema de justiça penal e socioeducativo (CNJ, 2020).
Desse modo, o judiciário vem recebendo amplo número de habeas corpus (HC) embasados na recomendação, esta que tinha duração de 90 dias, teve sua vigência ampliada por mais 90 dias pelo pleno do CNJ no dia 12 jun. 2020. De acordo com levantamento desse mesmo ente, houve adesão voluntária em 24 estados no tocante a revisão da prisão de presos em grupo de risco que não cometeram crimes com violência ou grave ameaça, resultando na soltura de aproximadamente 4,8% dos presos do sistema penitenciário nacional (SEM AUTOR, 2020).
Porém, pesquisas quantitativas indicam que de modo geral o judiciário vem sendo relutante em sua aplicação. Pesquisa da Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP, 2020) e de Machado e Vasconcelos (2020) tendo por objeto o TJSP, indicam para a não aplicação da recomendação em 97% e 88% dos casos, respectivamente. Da mesma forma, levantamento do jornal Folha de SP indica que apenas 6% dos habeas corpus foram concedidos no STF (BALTHAZAR, MARIANI, 2020).
Aqui têm-se como enfoque a análise da fundamentação das decisões jurisdicionais do STJ (pois tem como função a uniformização da jurisprudência pátria, e tem competência para julgar habeas corpus nos quais a autoridade coatora são os Tribunais de Justiça) em relação a HC coletivos, que tem potencial de gerar maior aplicação a recomendação 62/2020.
O HC coletivo tem por objeto a tutela coletiva de direitos, visando resguardar direitos individuais homogêneos, que apesar de derivarem de pessoas diferentes, tem mesma causa fática ou jurídica (SARMENTO, BORGES e GOMES, 2015).
O uso do writ coletivo ganhou grande destaque no STF com o julgamento do HC nº 143.641 que beneficiou todas as mulheres submetidas à prisão cautelar no sistema penitenciário nacional que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães com crianças com até 12 anos de idade sob sua responsabilidade.
A falta de homogeneidade entre os pacientes e a diversidade de autoridades coatoras levou o STF a criar exceções dentro da própria decisão, inclusive abrindo cláusula geral ao final para situações excepcionalíssimas nas quais será possível a manutenção da prisão cautelar, desde que devidamente fundamentadas.
Sarmento, Borges e Gomes (2015) argumentam que, o HC coletivo é necessário para a concretização do direito material a liberdade, que deve ter tutela jurisdicional adequada a situação de violação. De modo que violações de caráter coletivo exigem ações coletivas, sendo certo que a necessidade de um instrumento processual simples, rápido e efetivo está prevista no art. 25 do Pacto de San José da Costa Rica.
Em relação a recomendação 62/2020 do CNJ, como exemplos da concessão de HC coletivo no STJ, citem-se 3 casos: a) a concessão provisória de prisão domiciliar para devedores de alimentos (decisão do HC nº 568.021/CE que acabou sendo positivada no art. 15 da lei 14.010/2020); b) a determinação de liberdade provisória para pessoas que somente encontravam-se presas em decorrência do não pagamento da fiança (HC nº 568.693/ES); c) a concessão de prisão domiciliar para presos do regime semiaberto de Uberlândia que perderam os benefícios do referido regime em razão da pandemia, e se encontravam em situação muito semelhante ao regime fechado (HC nº 575.495/MG).
Já, em sentido oposto, como exemplos da não concessão do HC coletivo, citem-se 3 casos também: a) negado pedido de concessão de liberdade para todas as pessoas presas ou que venham a ser presas que estejam em grupo de risco do coronavírus (HC 570440/DF); b) indeferidos HC em prol de presos idosos em três presídios distintos de SP, agrupados em apenas um item pela sua semelhança (HC 575.315, 575.314 e 576.036) e c) negado pedido de concessão de prisão domiciliar para presos de SC do regime semiaberto que progrediriam para o regime aberto nos próximos 6 meses (HC nº 574978 SC).
Não se busca analisar aqui os fundamentos de cada caso concreto com profundidade, mas apenas analisar as razões do cabimento ou não do writ coletivo nos precedentes exemplificativos da divergência da corte. Nesse sentido, nos casos em que a ordem foi concedida, observa-se que os argumentos mais trazidos à baila em relação ao HC coletivo referem-se à celeridade e eficiência exigidas por uma sociedade de massa que exige a existência de instrumentos processuais coletivos também no processo penal. Esses julgados citam como precedente da possibilidade de aplicação o HC 143.641/SP e como argumento doutrinário as lições de Andrade, Masson e Andrade no livro “Interesses difusos e coletivos”.
Já nos casos de não aceite do uso do instrumento coletivo aparece o apelo ao argumento de que o STJ já sufragou o entendimento de que não é cabível a roupagem coletiva ao HC. Tal argumento de autoridade, reside na fórmula se o STJ diz X, então X.
Porém tal afirmação encontra dificuldades de se sustentar, tendo em vista que existem diversas decisões do Tribunal reconhecendo a possibilidade de tal instrumento (além dos casos supramencionados, citem-se o HC nº 207.720/SP de 2012 e HC nº 320.938/SP de 2015, demonstrando o aceite no STJ anteriormente mesmo ao precedente do STF no HC nº 143.641/SP).
Ainda, algumas decisões entendem pela possibilidade do instituto do writ coletivo, porém exigem maior grau de similitude entre a situação fática e jurídica dos pacientes da ação, e devido a essas diferenças entende pela necessidade da análise individualizada.
Todavia, a marca comum em ambas posições é a ausência do distinguishing sobre quais casos seriam admitidos o HC coletivo e quais não seriam. Explica-se, ambos os posicionamentos citam precedentes do STF e do STJ para embasar o argumento, porém não enfrentam os fundamentos de tais decisões e porque se adequariam com o caso concreto.
De modo que, o grau de semelhança entre a situação jurídica e fática dos pacientes exigido para que seja cabível tal ordem não é discutido com profundidade, e conforme Lopes Junior (2020, p. 1741) “não há que se confundir sumariedade na cognição com superficialidade da discussão”. Assim, observa-se uma zona cinzenta acerca do nível de igualdade entre a situação dos pacientes para concessão da ordem.
Por conseguinte, mediante o exposto, é preciso que a jurisprudência avance no debate sobre o cabimento do HC coletivo, instrumento importante para a tutela de direitos mediante violações de caráter coletivo, tão frequentes no sistema carcerário pátrio e agravadas pela pandemia de COVID-19. Por fim, importante ressaltar a necessidade de a jurisprudência delinear as hipóteses de cabimento do remédio coletivo para evitar decisões dissonantes advindas dos Tribunais Superiores cuja missão é a uniformização da jurisprudência pátria.
REFERÊNCIAS
BALTHAZAR, Ricardo; MARIANI, Daniel. STF resiste a pressões para soltar presos durante pandemia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 25 mai. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 jul. 2020.
Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 62, de 17 de março de 2020. Recomendação aqui. Acesso em 15. jul. 2020.
SEM AUTOR. CNJ renova Recomendação nº 62 por mais 90 dias e divulga novos dados. Agência CNJ de notícias, 12 jun. 2020. Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2020.
DEPEN. Medidas de combate ao COVID-19. Brasília, 2020. Disponível aqui. Acesso em: 13 jul. 2020.
DPE-SP. Só 3% dos processos de pessoas presas em grupo de risco para Covid-19 ou outros indicados pelo CNJ para contenção da pandemia recebem alvará de soltura em SP, aponta estudo da Defensoria. São Paulo, 2020. Disponível aqui. <>. Acesso em: 11 jun. 2020.
MACHADO, Maíra Rocha; VASCONCELOS, Nathalia Pires de. Encarcerar até o vírus. Folha de S. Paulo, 01 jul. 2020. Quatro cinco um. Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2020.
LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
SARMENTO, Daniel; BORGES, Ademar; GOMES, Camilla. O cabimento do habeas corpus coletivo na ordem constitucional brasileira. UERJ, Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ, 2015.
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