A (re)construção do direito pelos novos valores sociais
Por Chiavelli Facenda Falavigno
O Código Penal brasileiro foi produzido em 1940 e, em que pesem as diversas reformas parciais já sofridas, sendo a principal delas em 1984 – há mais de 30 anos! –, são muitos os artigos que remanescem com sua redação original. A terminologia ali utilizada, invariavelmente, expressa uma gama de valores predominantes à época de sua elaboração.
Essa característica, aliás, não se restringe ao texto legal, sendo também observada nas demais fontes do direito, como doutrina e jurisprudência, quando produzidas em “outros tempos”. O direito é uma disciplina humana, que utiliza da linguagem, do vernáculo, como principal forma de manifestação. E estes, em suas variadas significações e interpretações, são também produto da cultura vigente. Afinal, como já sabemos, as palavras dizem coisas.
Sabe-se que, atualmente, a percepção do tempo, a aceleração social e a própria velocidade das mudanças permitem que poucos anos redundem em sensíveis transformações sociais, abrangendo valores que pareciam arraigados na mentalidade mais tradicional e que, aos poucos, deixam de ser os predominantes.
O fenômeno ainda pode ser analisado sob o aspecto da física, que seria a velocidade que a técnica proporciona, e a velocidade que constitui a noção do tempo social. Essa última corresponde à experiência, à vivência subjetiva individual e coletiva (POZZEBON, 2005, p. 367). Hoje, a noção do instantâneo aparece como uma negativa do fato real, pela não apreensão dos acontecimentos, o escape das imagens pela fluidez da velocidade, ocorrendo verdadeira desconstrução pelo primado do tempo sobre o espaço (GAUER, 2011, p. 96). Assim, com a mudança na concepção do tempo, e na percepção da passagem dele, ocorre o fim de conceitos pré-determinados, instaurando-se a era das múltiplas escolhas e possibilidades (FALAVIGNO, 2015).
Em termos de legislação, doutrina e jurisprudência, com o surgimento de novos direitos – e de cidadãos dispostos a lutar por esses direitos – muitas mudanças são devidas, e me refiro, nesse ponto, aos próprios termos usados na lei – e demais fontes – e aos valores que estes, às vezes de forma subentendida, expressam. Pode-se sentir, então, a permanência indevida, nessa seara que, teoricamente, a todos representa, de expressões que, hoje, não nos parecem mais moralmente ou politicamente tuteláveis.
É nesse sentido a decisão do Supremo Tribunal Federal, publicada no Informativo n. 805, que retirou expressões do Código Penal Militar consideradas sexualmente discriminatórias.[1] Em que pese possa haver características próprias da disciplina militar, não se justifica que um diploma legal contenha expressões que discriminem parcela da população.
Após as louváveis reformas de 2009 ocorridas nos antiquíssimos “crimes contra os costumes” do diploma criminal, ainda há muito o que modificar nesse sentido em nossa lei e em sua fundamentação, caso do ponto 50 da Exposição de Motivos do Código Penal[2], por exemplo. Isso não quer dizer, de forma alguma, que os elaboradores do texto original do Código – ou das reformas parciais nele feitas até o momento – não estivessem certos, a seu tempo, e sim que, aos poucos, ou ao menos em alguns aspectos, a mentalidade social muda e, também, evolui.
Ainda bem.
REFERÊNCIAS
FALAVIGNO, Chiavelli. Interpretação judicial criativa pro reo em direito penal. Porto Alegre: Núria Fabris, 2015.
GAUER, Ruth Maria Chittó. A fundação da norma: para além da racionalidade histórica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.
POZZEBON, Fabrício Dreyer de Ávila. Reflexos da crise do conhecimento moderno na jurisdição: fundamentos da motivação compartilhada no processo penal. Porto Alegre, 2005.
NOTAS
[1] As expressões “pederastia ou outro” — mencionada na rubrica enunciativa referente ao art. 235 do CPM — e “homossexual ou não” — contida no aludido dispositivo — não foram recepcionadas pela Constituição (“Pederastia ou outro ato de libidinagem – Art. 235. Praticar, ou permitir o militar que com êle se pratique ato libidinoso, homossexual ou não, em lugar sujeito a administração militar: Pena – detenção, de seis meses a um ano”). Essa a conclusão do Plenário que, por maioria, julgou parcialmente procedente pedido formulado em arguição de descumprimento de preceito fundamental proposta contra a referida norma penal. De início, o Tribunal conheceu do pedido. No ponto, considerou que os preceitos tidos como violados possuiriam caráter inequivocamente fundamental (CF, artigos 1º, III e V; 3º, I e IV; e 5º, “caput”, I, III, X e XLI). Além disso, o diploma penal militar seria anterior à Constituição, de modo que não caberia ação direta de inconstitucionalidade para questionar norma nele contida. Assim, não haveria outro meio apto a sanar a suposta lesão aos preceitos fundamentais. No mérito, o Colegiado apontou que haveria um paralelo entre as condutas do art. 233 do CP (ato obsceno) e 235 do CPM. Na norma penal comum, o bem jurídico protegido seria o poder público. Na norma penal militar, por outro lado, o bem seria a administração militar, tendo em conta a disciplina e a hierarquia, princípios estes com embasamento constitucional (CF, artigos 42 e 142). Haveria diferenças não discriminatórias entre a vida civil e a vida da caserna, marcada por valores que não seriam usualmente exigidos, de modo cogente e imperativo, aos civis. Por essa razão, a tutela penal do bem jurídico protegido pelo art. 235 do CPM deveria se manter. Acresceu, entretanto, que o aludido dispositivo, embora pudesse ser aplicado a heterossexuais e a homossexuais, homens e mulheres, teria o viés de promover discriminação em desfavor dos homossexuais, o que seria inconstitucional, haja vista a violação dos princípios da dignidade humana e da igualdade, bem assim a vedação à discriminação odiosa. Desse modo, a lei não poderia se utilizar de expressões pejorativas e discriminatórias, considerado o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade essencial do indivíduo. Vencidos os Ministros Rosa Weber e Celso de Mello, que acolhiam integralmente o pedido para declarar não recepcionado pela Constituição o art. 235 do CPM em sua integralidade. ADPF 291/DF, rel. Min. Roberto Barroso, 28.10.2015. (ADPF-291). Disponível aqui.
[2] Fez-se referência expressa ao comportamento da vítima, erigido, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, como, entre outras modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes. Disponível aqui.