A rejeição da peça acusatória à luz do garantismo penal
A rejeição da peça acusatória à luz do garantismo penal
O Código de Processo Penal, em seus artigos 41 e 395, previu, expressamente, as hipóteses de não recebimento da inicial acusatória, aplicáveis no âmbito das ações penais públicas (art. 100, caput, do Código Penal) e daquelas de iniciativa do ofendido (art. 100, §2º e §3º, do Código Penal).
As motivações e enredos argumentativos adotados pelo julgador ao decidir sobre a rejeição da denúncia ou da queixa, contudo, não se esgotam no texto das normas processuais sob exame.
Para além das expressões da lei, podemos dizer que a rejeição da inicial acusatória é pautada, em especial, por duas assertivas, cuja conjugação leva ao entendimento de que o juiz criminal, ao menos no plano abstrato, é tendente ao não recebimento da denúncia ou da queixa-crime, são elas: 1) o processo penal brasileiro adotou a matriz de pensamento garantista; 2) o Julgador é também gestor. A primeira delas será abordada ao longo deste texto; a segunda fica reservada a ocasião futura.
O garantismo penal e a rejeição da inicial acusatória
O pensamento garantista, em seus antecedentes mais próximos, remonta à obra de Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria, intitulada “Dos Delitos e das Penas” (1764).
Oportunamente, relembramos: no orbe contratualista, a existência do direito penal buscou legitimar a atuação do poder de punir, considerado o objetivo de tutelar a propriedade, inclusive do corpo, a partir de duas perspectivas: a prevenção do delito e a proteção do indivíduo contra a atuação arbitrária do Estado (QUEIROZ, 2006, p. 83).
Nesse sentido, necessário que o sistema de justiça criminal firme suas amarras em limites pré-definidos, como forma de objetar eventuais arbitrariedades.
Para tal, em seu campo de conformação, o doutrinador italiano Luigi Ferrajoli, embora não os tenha instituído, sistematizou os 10 (dez) axiomas do SG: não há pena sem crime; não há crime sem lei; não há lei sem necessidade; não há necessidade sem lesão; não há lesão sem ação; não há ação sem culpa; não há culpa sem julgamento; não há julgamento sem acusação; não há acusação sem prova; não há prova sem defesa [tradução nossa] (FERRAJOLI, 2014, p. 91)
O Sistema Garantista procurou racionalizar o processo penal, de modo que só se puna quando se deva punir; só se deixe de punir quando a punição for ilegítima ou desnecessária. Em outras palavras, o processo penal passa a ser um juízo de cognição dos fatos (jurisdicionalidade estrita) e recognição do direito (legalidade estrita), não sendo permitido ao juiz construí-los com base em suas pré-concepções ou critérios de autoridade. (LOPES JR, 2005, p. 259).
Por certo, o sistema de que falamos não é indene de críticas; há quem, com intuito pejorativo, o trate como legalismo; bem como existem autores, notadamente no âmbito das criminologias críticas, que o recebem com muitas ressalvas, dentre elas o argumento de que o sistema garantista, no que pesem suas boas intenções, é baseado na ingenuidade cartesiana de desconsiderar que a verdade processual será sempre construída, ao prazer do julgador, por critérios de disposição ou poder. (ANDRADE, 1997, p. 260-262).
A despeito das críticas, a Constituição Democrática de 1988, no erigir da chamada Teoria Constitucional do Processo Penal, patentemente, adotou por matriz o pensamento garantista. Para os fins visados, basta conferir o teor de seu art. 5º, inciso XXXIX (princípio da legalidade estrita/taxatividade); inciso LIV (princípio do devido processo legal); inciso LV (princípios da ampla defesa e do contraditório); inciso LVI (princípio da legalidade da prova); inciso LVII (princípio da presunção de inocência); e de seu art. 129, inciso I (princípio-regra acusatório).
A rejeição da inicial acusatória insere-se no contexto garantista, em síntese, pois exige ao acusador (princípio acusatório) angariar elementos informativos suficientes (justa causa) ao início da ação penal; e do julgador promover controle de legalidade e jurisdicionalidade sobre a persecução do delito.
Derivam as profilaxias jurídicas de que falamos do princípio da presunção de inocência e do sistema acusatório. É certo que, para a fase de recebimento da denúncia ou da queixa (juízo de probabilidade), não é exigível a plena certeza acerca da prática do crime (materialidade) e/ou quem seja o seu autor (autoria), indagações a serem melhor esclarecidas durante a instrução processual. Não por outra razão, diz a doutrina que o recebimento da exordial acusatória fundamenta-se no adágio jurídico “in dubio pro societate”.
Todavia, a expressão doutrinária deve ser vista com reservas. No âmbito do sistema processual penal garantista, a regra geral quanto ao ônus de provar (art. 156, caput, do CPP) cotejada ao princípio da não culpabilidade (art. 5, LVII, da CF) conduz à conclusão de que o ordenamento acometeu ao parquet, titular da ação penal (art. 129, inciso I, da CF), ao menos, angariar elementos suficientes para a deflagração de procedimentos criminais tendentes à contração do estado de liberdade (status libertatis), ex vi dos artigos 312 e 413 do CPP. Confira-se o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
[…] a lógica confusa e equivocada ocasionada pelo suposto “princípio in dubio pro societate”, além de não encontrar qualquer amparo constitucional ou legal, acarreta o completo desvirtuamento das premissas racionais de valoração da prova. (voto do min. Gilmar Mendes). […] não se pode formular qualquer juízo que implique restrição à esfera jurídica do réu, especialmente nos casos em que o Ministério Público falha na satisfação do seu ônus probatório […] em vez do estado de dúvida favorecer o acusado, isso faz parte do próprio modelo consagrado pela Constituição vigente a partir de 1988 […] Em nosso sistema jurídico, uma situação de dúvida razoável só pode beneficiar o acusado, jamais prejudicá-lo. (ARE 1067392, voto do min. Celso de Mello) [grifei]
Arrematamos que, para além da expressão legal dos artigos 41 e 395 do CPP, a rejeição da denúncia é lastreada no enredo argumentativo garantista, porquanto deriva, diretamente, da presunção de inocência (nulla acusatio sine probatione) e da adoção do sistema acusatório (nullum judicium sine accusatione).
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997.
FERRAJIOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
LOPES JUNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
QUEIROZ, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?
Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.
Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.