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A representação do Delegado de Polícia depende do parecer favorável do Ministério Público?


Por Francisco Sannini Neto


De acordo com o nosso sistema jurídico, a investigação de infrações penais é materializada, em regra, por meio do inquérito policial, de atribuição privativa das policiais judiciárias, nos termos do artigo 144, da Constituição da República. Pode-se afirmar, destarte, que 99% das ações penais interpostas pelos seus titulares legais (Ministério Público, nas ações penais públicas e a própria vítima, nas ações penais privadas) são subsidiadas pelas investigações realizadas pelas polícias Civil e Federal.

Ocorre que, ao longo dos procedimentos investigativos, diversas medidas cautelares, sejam elas de natureza real (sequestro, arresto etc.), probatória (interceptação telefônica, busca e apreensão etc.) ou de caráter pessoal (prisão preventiva, temporária, proibição de frequentar determinados lugares etc.), são necessárias para a perfeita apuração do crime.

Atento ao fato de que o Delegado de Polícia é o titular do inquérito policial, o legislador lhe conferiu as ferramentas necessárias para o exercício desse mister. Assim, sempre que a Autoridade de Polícia Judiciária vislumbrar a necessidade da adoção de uma medida cautelar, que, em regra, só pode ser concedida pelo Juiz[1], ele deve se valer de uma representação para provocá-lo.

Nos termos do artigo 129, incisos VII e VIII, da Constituição da República, cabe ao Ministério Público a função de exercer o controle externo da atividade policial, bem como requisitar diligências investigatórias e a própria instauração do inquérito policial. Demais disso, o Parquet sempre deve atuar como o fiscal da lei.

Nesse sentido, o representante do Ministério Público sempre deverá ser ouvido nos casos em que houver representação do Delegado de Polícia pela decretação de alguma medida cautelar. Isso significa que o órgão ministerial deverá ofertar um parecer, vale dizer, emitir uma mera opinião sobre o caso representado, sem que, com isso, o Poder Judiciário fique vinculado à sua manifestação.

Primeiramente, devemos salientar que a investigação criminal não é direcionada ao titular da ação penal. Na verdade, o inquérito policial se caracteriza como um instrumento democrático e imparcial, cujo único desiderato é reunir provas e elementos de informação quanto à autoria e materialidade delituosa, justificando, se for o caso, a propositura da ação. Em outras palavras, o inquérito policial não serve nem a acusação e nem a defesa, sendo compromissado apenas com a verdade e com a justiça.

Muito embora o inquérito policial, na maioria das situações, sirva para reunir elementos contra o sujeito passivo da investigação, em outros casos sua função é exatamente contrária, ou seja, a de fornecer provas ao próprio investigado, impossibilitando, assim, que ele seja processado. É nesse sentido que o inquérito policial acaba atuando como uma espécie de filtro, impedindo que acusações infundadas desemboquem em um processo. Em consonância com esse entendimento, Eduardo CABETTE (2013, p. 106) assevera que

“O Inquérito Policial não é e jamais será instrumento a serviço do Ministério Público ou do Querelante somente, mas sim da busca da verdade processualmente possível de forma imparcial, dentro da legalidade. O Delegado de Polícia não deve produzir ou colher provas e indícios somente voltados para a acusação, mas sim de forma genérica, primando pela total apuração dos fatos, venha isso a beneficiar a defesa do suspeito ou a incriminá-lo”.

Desse modo, salta aos olhos que a titularidade da ação penal não apresenta qualquer relação com a titularidade da investigação criminal. Assim, as investigações conduzidas pelo Delegado de Polícia devem se desenvolver de maneira independente e desvinculadas das opiniões acerca dos fatos do titular da ação posterior. Não podemos perder de vista que a persecução penal se materializa em duas fases distintas, ainda que complementares, sendo que em cada uma delas nós temos um titular diferente, com convicções jurídicas e percepções possivelmente distintas sobre os mesmos fatos. Deve-se preservar, pois, a independência entre as instâncias, o que apenas fortalece e qualifica a decisão final, garantindo-se, ainda, a plena observância do sistema acusatório.

Ora, o Delegado de Polícia, como presidente do inquérito policial, é a autoridade mais indicada para saber quais as necessidades da investigação em desenvolvimento, sendo que a utilização de medidas cautelares constitui um dos possíveis caminhos a serem trilhados em busca da verdade dos fatos. Nesse contexto, se a adoção de tais medidas ficasse condicionada ao parecer do Ministério Público, isso significaria que a própria investigação ficaria vinculada a este órgão e sob o seu controle, o que, convenhamos, seria um absurdo, especialmente após o advento da Lei 12.830/2013, que dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo Delegado e Polícia. Consigne-se, ainda, que, para formar seu convencimento jurídico acerca dos fatos, a Autoridade Policial precisa das ferramentas necessárias para a investigação. Desse modo, se condicionarmos a sua representação ao parecer favorável do titular da ação penal, nós estaríamos, por via oblíqua, o impedindo de encontrar os fundamentos indispensáveis para a formação da sua decisão final, alijando por completo a própria investigação.

Em sentido semelhante é o escólio de Marcos Paulo DUTRA SANTOS (2011, p. 90), ao tratar da representação pela decretação da prisão temporária, cujo conteúdo deve ser repetido na íntegra:

“Inexiste inconstitucionalidade no atuar da autoridade policial, mesmo porque o art.129, I, da Constituição da República tornou privativo do Ministério Público o exercício da ação penal pública, e não a postulação de medidas cautelares. Tampouco resta vulnerado o sistema acusatório, cujo berço constitucional também corresponde ao art.129, I, da Carta de 1988, porquanto a autoridade policial se alinha ao Parquet enquanto órgãos de repressão estatal, logo a representação pela prisão temporária não discrepa do poder de polícia judiciária que lhe foi confiado no art.144 da CRFB/88. Com efeito, as medidas cautelares são, em regra, postuladas por quem possui legitimidade ad causam. Mas isto não significa que o legislador, do alto de sua soberania, não possa eventualmente conceder tal legitimidade a quem não seja parte no processo. Não haverá ofensa a qualquer preceito constitucional caso assim o faça, mesmo porque seria uma legitimatio propter officium, isto é, uma legitimação decorrente do ofício desempenhado por tal agente. E assim o é no tocante à Autoridade Policial e à sua legitimidade para representar pela prisão temporária.”

Reforçando os argumentos de Dutra Santos, entendemos que a teoria dos poderes implícitos, sempre invocada pelo Ministério Público para sustentar a sua legitimidade em realizar atos de investigação criminal, serve para demonstrar a desvinculação entre a representação do Delegado de Polícia e o parecer do dominus litis. Ora, se a titularidade da investigação criminal foi conferida às Polícias Judiciárias, tendo em vista que a adoção de medidas cautelares constitui ferramenta indispensável ao correto desenvolvimento desse mister, condicioná-las ao parecer favorável do Ministério Púbico seria a mesma coisa que retirar as ferramentas imprescindíveis à investigação, fazendo com que a própria existência de uma polícia investigativa perca o seu sentido. Em outras palavras, se o legislador constituinte incumbiu às polícias civil e federal o protagonismo na investigação de infrações penais (atividade-fim), implicitamente ele também lhes conferiu os meios para o desempenho de tão importante missão (representação pela decretação de medidas cautelares como, por exemplo, a interceptação telefônica ou a prisão preventiva).

Se, por outro lado, o representante do Parquet não vislumbrar a existência de justa causa para a propositura da ação, ele poderá se manifestar nesse sentido após o encerramento das investigações, optando pelo não oferecimento da denúncia e, por exemplo, requerendo o arquivamento do inquérito policial. Dessa forma restam preservadas as independências funcionais dos órgãos responsáveis pela persecução penal, sendo que a decisão final caberá sempre ao Poder Judiciário e não às partes. É mister não olvidar que na seara criminal o Ministério Público, em regra, é parte no processo, constituindo-se como o órgão responsável pela acusação. Justamente por isso, sua atuação deve ser opinativa ou de requerimentos, não podendo suas manifestações limitar, de qualquer modo, a decisão judicial. Aliás, conforme bem apreendido por Eduardo CABETTE (2013, p. 107), “’decisão’ é somente a Judicial, cabe ao Ministério Público e demais atores processuais opinar e pedir. Não se podem confundir as funções jurisdicionais com as funções ministeriais.”

Diante do exposto, entendemos que o parecer do Ministério Público não pode condicionar a decretação de medidas cautelares provenientes de representações do Delegado de Polícia, sendo que os entendimentos contrários prejudicam a investigação criminal e colocam em risco a própria função das Polícias Judiciárias, ameaçando, outrossim, o correto exercício do direito de punir pertencente ao Estado. Isso não significa, todavia, que o Parquet não possa se manifestar sobre a necessidade das medidas, pelo contrário. Como fiscal da lei, é até recomendável que o Ministério Público se manifeste, mas em um contexto opinativo, sem que isso possa vincular de qualquer forma a decisão do Poder Judiciário.


REFERÊNCIAS

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Lei 12.403  Comentada – Medidas Cautelares, Prisões Provisórias e Liberdade Provisória.

DUTRA SANTOS, Marcos Paulo. O Novo Processo Penal Cautelar. Salvador: Juspodivm, 2011.


NOTAS 

[1] Excepcionalmente, o próprio Delegado de Polícia pode conceder uma medida cautelar. É o que ocorre no caso da liberdade provisória mediante fiança, conforme previsão expressa do artigo 322, do CPP. Para uma melhor compreensão do tema, recomendamos outro trabalho de nossa autoria disponível aqui.

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Francisco S. Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos. Delegado.

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