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A responsabilização da vítima e o poder punitivo

Por Luana Broni de Araújo e Natália Pinto Costa. No início de novembro de 2020, o tema violência sexual ganhou bastante repercussão nas redes sociais após uma publicação do jornal online independente Intercept Brasil divulgar em suas redes trechos da audiência do caso da jovem Marina Ferrer, de 23 anos, que no transcorrer da instrução processual foi questionada pelo advogado Cláudio Bastão sobre as fotos que postava em suas redes sociais, utilizando-se de estratégias que claramente deixaram a vítima constrangida, mas que tinha o intuito de afirmar que o caso em questão não se encaixava como estupro, tentando de diversas maneiras desqualificar Marina do “papel ideal de vítima”.

A responsabilização da vítima

Inclusive, essa é uma estratégia bastante similar a diversos casos que abordam a mesma temática. Pode-se citar outro caso que teve bastante repercussão midiática, como o da jovem de 16 anos que foi violentada coletivamente na cidade do Rio de Janeiro, em maio de 2016, em que vídeos foram compartilhados com a jovem desacordada e nua e que assim como Marina também teve seu papel de vítima questionado. A palavra da mulher é sempre colocada sob a égide da dúvida, questionando-se qual roupa estava usando, quais seus relacionamentos sexuais anteriores, …, como dito anteriormente, tudo como uma estratégia de culpabilizar a vítima, termo este que inclusive foi utilizado pelo o psicólogo Willian Ryan para citar os casos de negros que eram vítimas de preconceito racial nos EUA, entretanto, atualmente o termo foi ampliado e tem um vasto significado, como nos casos relatados de violência sexual.

Em resumo, a culpabilização da vítima nos casos de violência sexual, trata-se exatamente desta estratégia de responsabilizar a mulher pela violência que a ela foi cometida, principalmente, quando ela não se encaixa dentro do perfil de “indefesa” que o imaginário coletivo desenhou para as pessoas que sofrem violência sexual, o que Beatriz Accioly Lins e Arielle Sagrillo Scarpati[1] discorrem fazer parte da série de comportamentos e crenças decorrentes dos “mitos do estupro”, como por exemplo, narrativas de que a mulher vai ser abordada por um agressor desconhecido em um local ermo ou algo deste gênero.

Apesar de os dois casos citados no presente trabalho terem tido bastante repercussão midiática e indignação coletiva, ainda são tratados como casos isolados, entretanto, não são. No Brasil, conforme dados divulgados no 14° Anuário de Segurança Pública,[2] a cada 8 minutos tem-se um estupro, onde 83,5% das vítimas são do sexo feminino, ou seja, esse é um problema que é estrutural, como Mailô[3] vai discorrer em sua dissertação, estamos imersos em uma cultura de estupro onde existe uma naturalização destas violências, em que a dominação do corpo masculino sobre o feminino se torna banal e que essas estratégias de culpabilização da vítima fazem parte de toda essa cultura. Muitas vezes, o próprio sistema de justiça criminal reafirma e reproduz tal cultura.

Poderia se discorrer mais sobre os problemas institucionais do Judiciário, a sua seletividade, a sua forma de exercer também controle sobre corpos que são criminalizados, entretanto, o objetivo do referido trabalho é discorrer sobre nossa imersão nessa cultura de estupro e o quão necessário é quebrar com representações sociais em que a mulher é demonizada e culpabilizada pelas violências que sofre.

É preciso também questionar o papel da mídia dentro desta cultura como criadores de realidades e sociabilidades em que reforçam os “mitos do estupro”, tem-se que pensar nesta violência como um problema sistematizado e estrutural alinhado ao patriarcado que o tempo todo pretende afirmar o papel da mulher como subalterna onde não deve ter o controle do seu corpo, lhe impondo lugares dentro de uma estrutura opressora, machista e heterossexual – a depender de qual mulher estamos falando ainda existem outros marcadores recaindo sobre seus corpos, como raça, por exemplo.

Além do mais, é importante analisarmos que após a inserção das redes sociais, utilizam-se do discurso do ódio para perpetuar estigmas recorrentes em nossa sociedade. Não é sobre a roupa que a mulher está usando ou seu jeito de andar, não é o modo como ela fala ou gesticula. A culpa nunca é da vítima, ela nunca provocou, ela também não procurou.

O patriarcado, como já mencionado, apresenta um papel fundamental nessa cultura do estupro. Enquanto corpos masculinos se compreenderem como donos dos corpos femininos, a proliferação da violência se manterá ativa. Desde estupros a casos de violência doméstica, dentre outras. O machismo está em todos os lugares e por isso é necessário combate-lo. É um inimigo comum de todas as mulheres.

E, sobretudo, como alerta Luanna Tomaz e Thula Pires,[4] é oportuno ouvir as vozes das mulheres que enfrentam esse tipo de violência, que elas sejam sujeitas dos seus próprios discursos e não objetos de discursos e se atentar para a complexibilidade que são todos os grupos e coletivos femininos e suas relações com o sistema de justiça e que é preciso questionar e interligar essa luta com outras, como a raça, que inclusive já foi mencionado.

[1]https://diplomatique.org.br/na-pratica-a-teoria-e-outra-o-caso-mariana-ferrer-e-os-mitos-sobre-estupro/

[2] https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-final.pdf

[3] ANDRADE, Mailô de Menezes Vieira. Ela não mereceu ser estuprada”: a cultura do estupro, seus mitos e o (não) dito nos casos penais. Orientadora: Ana Cláudia Bastos de Pinho. 2018. 146 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Instituto de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Pará, Belém, 2018. Disponível em: http://repositorio.ufpa.br/jspui/handle/2011/10573. Acesso em 12 de nov. 2020.

[4] Souza, Luanna & Pires, Thula. (2019). É POSSÍVEL COMPATIBILIZAR ABOLICIONISMOS E FEMINISMOS NO ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS COMETIDAS CONTRA AS MULHERES?. Revista Direitos Culturais. 15. 129. 10.20912/rdc.v15i35.3274.

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Pedro Ganem

Redator do Canal Ciências Criminais

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