Por Adriane da Fonseca Pires
As normas de compliance consistem em um instrumento que as instituições utilizam para “nortear a condução dos próprios negócios, proteger os interesses de seus clientes e salvaguardar o seu bem mais precioso: a reputação” (CALDERORO, 2012, p. 30).
Na base do Sistema Espanhol está o Sistema Comunitário Europeu. A Recomendação R (88) do Conselho da Europa, em relação à responsabilidade penal das empresas, estabelece a premissa de que a empresa deve ficar isenta de responsabilidade criminal quando não houver envolvimento da organização na prática do delito, ou que a sociedade tenha tomado medidas necessárias para impedir o cometimento do delito.
A Lei Orgânica 5/2010, que modificou o Código Penal Espanhol, introduziu naquele ordenamento jurídico a possibilidade de responsabilização penal da pessoa jurídica (artigo 31 bis). A intenção era estimular a empresa a apoiar comportamentos, em conformidade com a lei, por meio de programas de internos de compliance, além de sistemas de controle interno e canais de denúncia. A finalidade foi evitar que a empresa seja utilizada como instrumento para a prática delituosa.
Como já destacado no preciso texto de Cezar de Lima, publicado neste canal anteriormente, “essa responsabilidade penal ocorrerá (i) em face dos crimes cometidos por pessoas físicas que ocupem posições de representantes legais ou administradores das pessoas jurídicas e, também, (ii) pelos delitos praticados por funcionários subordinados” (LIMA, 2015).
Havia a previsão legal de atenuação da pena na hipótese de seus representantes legais, após o cometimento do delito e antes do julgamento: atuarem de forma a denunciarem a si mesmos; auxiliarem a coleta de provas da prática delituosa; atuarem diligentemente no sentido de reparar ou diminuir o dano ocasionado pela prática delitiva, além do estabelecimento de medidas eficazes para a prevenção e a descoberta de delitos dentro da empresa (artigo 31 bis, 4, a, b, c e d)
A reforma de 2015 do Código Penal Espanhol abrangeu mais de duzentos dispositivos, dentre eles os artigos que tratam da responsabilidade penal da pessoa jurídica.
Em recente artigo publicado no importante periódico alemão de Dogmática Penal (ZIS 04/2016), Beatriz Goena Vives defende que as mudanças acima referidas permitem verificar, segundo, que o direito penal já tomou uma nova forma, cujo desenho seguiu as diretrizes de um processo liderado pelos Estados Unidos e importado pela Europa (VIVES, 2016, p. 248). Segundo a autora, “em um esforço claro para reduzir a incerteza derivada do regime existente, o novo 31 bis desenvolve uma série de critérios muito concretos que especificam os requisitos que um programa de conformidade penal adequada deve ter” (VIVES, 2016, p. 250).
A atual redação do art. 31 bis do CP, traz, em seu parágrafo 2, uma regra que prescreve que as pessoas coletivas poderão ser isentas de responsabilização criminal se: o Conselho de Administração tiver adotado e, efetivamente, implementado, anteriormente ao cometimento do delito, modelos de organização e gestão que incluam medidas de monitoramento e controle apropriado para prevenir crimes ou reduzir o risco de seu cometimento; monitoramento do desempenho do modelo de prevenção implantado, o qual deve estar a cargo de órgão independente dentro da pessoa jurídica (departamento de compliance); que o crime tenha sido praticado por indivíduos de forma fraudulenta iludindo os modelos organizacionais e de prevenção e que não tenha ocorrido omissão ou falha no exercício das suas funções de acompanhamento, vigilância e controle por parte do organismo.
No parágrafo 5 do mesmo artigo são identificados os requisitos para um modelo organizacional e de gestão: identificar as atividades por meio das quais crimes podem ser cometidos; estabelecer protocolos ou procedimentos que incorporem o processo de formação da vontade da pessoa, a tomada de decisão jurídica e a implementação dos mesmos; prever modelos de gestão de recursos financeiros adequados para prevenir o cometimento de crimes que devem ser evitados; estabelecer a obrigação de relatar possíveis riscos e padrões para o organismo responsável pela monitorização do funcionamento e aplicação do modelo de prevenção; estabelecer um sistema disciplinar para eventual descumprimento das medidas estabelecidas e realizar uma verificação periódica do modelo e sua eventual modificação, quando eles ensejarem violações significativas das suas disposições, ou quando mudanças organizacionais ocorrerem na estrutura de controle ou atividade desenvolvida.
Além disso, desde a aludida reforma, o art. 31 Quater passou a fixar as condições para a aplicação de uma circunstância atenuante da responsabilização penal. Tais condições são atitudes a serem tomadas após a prática do delito pelos representantes legais da empresa: (a) ter confessado o cometimento de crime às autoridades antes do estabeleciento de processo judicial; (b) ter colaborado em pesquisa feita com o fornecimento de provas, em qualquer fase do processo, provas novas e decisivas para o esclarecimento dos fatos; (c) ter, em qualquer momento do processo, mas antes da fase do juízo oral, reparado ou reduzido os danos causados por o crime, e (d) ter estabelecido, antes do início do juízo oral, medidas eficazes para evitar e descobrir os crimes que podem ser cometidos no futuro, por meio ou sob o manto da pessoa coletiva.
Beatriz Goena Vives defende que as sanções aplicadas às pessoas jurídicas, previstas no CP Espanhol (multas, dissolução, suspensão de atividades até cinco anos, intervenção judicial, inabilitação para obter subvenções ou contratar, fechamento do estabelecimento, etc.),
são medidas criminais corretivas, diferentes das punições impostas aos indivíduos. Isso exige, inclusive, uma interpretação que a separe “do tradicional modelo de alocação de responsabilidade da Teoria do Crime, sob o qual estão as penalidades direcionadas às pessoas físicas” (VIVES, 2016, p. 253). Pontua que:
As sanções aplicadas às corporações não são resultado de uma atribuição de culpa (ou Zurechnung), mas uma mera atribuição de responsabilidade (ou Zuschreibung), que não exige culpa e liberdade de ação, ao contrário do sistema de alocação, que exige. […] Portanto, art. 31 bis do Código Penal espanhol relativa à responsabilidade penal das pessoas coletivas deve ser visto como um modelo de mera atribuição de responsabilidade criminal. Esta declaração implica consequências significativas para a maneira pela qual a lei penal espanhola deve ser entendida quando se trate de sancionar corporações. Por um lado, o entendimento de que ela serve meramente para atribuição implica que os critérios para a adjudicação de responsabilidade são diferentes do modelo de alocação tradicional. Especificamente: (i) o sujeito não é um agente livre na posse de dignidade, mas uma corporação; (ii) a sua exigência não é um actus reus [ato físico externo que importa prática de conduta proibida], mas um “estado ilícito de coisas”; e (iii) a consequência não é uma punição em sentido estrito, mas um remédio orientada para a prevenção reativa (VIVES, 2016, p. 253).
Destacando a inspiração do regime espanhol na doutrina do Respondeat Superior, segundo a qual a culpabilidade das pessoas jurídicas é aferida em relação às condutas de seus empregados, defende que o aforismo “Societas delinquere non potest” ainda está vivo em direito penal espanhol. (VIVES, 2016, p. 251) e que:
a maneira pela qual a lei penal espanhola regulou responsabilidade corporativa não implica que as corporações sejam capazes de serem consideradas reprováveis, de agirem com culpabilidade. Corporações devem ser punidas por não observarem normas de controle ou por estarem sob um “estado ilegal das coisas”, o que permitiu o cometimento de um crime por um individuo no âmbito da organização. E a sanção imposta para o efeito não é uma punição criminal inspirado por retribuição e/ou dissuasão, mas uma mera medida corretiva baseada na prevenção reativa como um determinado modo de entender dissuasão corporativa. No entanto, uma vez estabelecida a natureza criminal das sanções às, a restrição a direitos deve ser informada pelas garantias que se aplicam no campo que tem sido tradicionalmente definido como a Magna Carta do Infrator (VIVES, 2016, p. 254).
Por outro lado, o Professor Carlos Gómez-Jara Díez, também em recente trabalho, cujo sugestivo título invoca a necessidade de se tomar a responsabilidade da pessoa jurídica “a sério”, discute a necessidade de se desenvolver categorias, tais como a capacidade de culpabilidade e inimputabilidade, para as pessoas jurídicas, “sob pena de se dar razão àqueles que defendem que a responsabilidade das pessoas jurídicas não é uma verdadeira responsabilidade criminal, mas outro tipo de responsabilidade” (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2016, p. 27). Defende que “a chave da questão está em se determinar até que ponto a responsabilidade penal das pessoas jurídicas é responsabilidade por fato alheio das pessoas físicas ou responsabilidade por fato próprio das pessoas jurídicas” (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2016, p. 28). Sustenta, em relação ao ordenamento espanhol após a reforma de 2015, que:
Os requisitos do código penal para a isenção de pena são elevados e não indicam apenas o controle legal dos riscos, mas afetam a culpabilidade da pessoa jurídica- cultura do compliance. Além disso, é claro que os requisitos do código penal não estão satisfeitos com a mera apresentação de um código de conduta pela pessoa jurídica, mas exigem que, no momento da prática da infracção, já esteja implantado um efetivo sistema de gestão de compliance eficiente. Os sistemas de conformidade são dois: um referente ao controle organizacional (conectado com a dimensão do injusto da pessoa jurídica e outro, referido à ligada cultura organizacional e conectado ao âmbito de aplicação da culpa da pessoa jurídica. Como acontece na lei criminal individual, os conceitos de injusto e culpa estão intimamente relacionados no direito penal empresarial (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2016, p. 32 e 42).
Dentre as normas objeto de reforma em 2015, destaca o autor a possibilidade de isentar a pessoa jurídica de responsabilização criminal diante da prévia existência (em relação ao cometimento do delito) de um efetivo e eficiente programa de compliance. Frisa a necessidade de se diferenciar as entidades que institucionalizam uma cultura de cumprimento daquelas que passam a adotá-la após a prática delitiva, de forma a remediar as consequências do non-compliance. Entende que:
os sistemas de compliance vão mais além do mero controle do risco e se vinculam com a existência de uma verdadeira cultura empresarial de cumprimento da legalidade. Estas duas dimensões, controle do risco e cultura de observância às normas legais, encontram uma vinculação relativamente fácil de traçar com os conceitos de injusto e de culpabilidade da pessoa jurídica (GÓMEZ-JARA DÍEZ, 2016, p. 32 e 42).
Como se pode verificar, a Dogmática Penal está a dever o desenvolvimento de categorias que sustentem um sistema de responsabilização penal da pessoa jurídica. No Direito Espanhol, “há respostas híbridas que registram uma dissonância entre o papel do direito penal e os efeitos da punição, com inúmeras áreas cinzentas em torno de conceitos como autoria, participação e princípio da culpabilidade” (VIVES, 2016, p. 248). Na Espanha, onde o debate está mais avançado e deve ser observado atentamente por todos os que se interessam pelas ciências criminais, não existem soluções satisfatórias e que não sejam conflituosas, mas, ao menos, existe uma discussão dogmática séria. No Brasil, a elaboração do projeto de Reforma do Código Penal não considerou, de modo suficiente, a necessidade de uma discussão doutrinário profundo.
REFERÊNCIAS
CANDELORO, Ana Paula P.; DE RIZZO, Maria Balbina Martins; PINHO, Vinicius. Compliance 360º: riscos, estratégias, conflitos e vaidades no mundo corporativo. São Paulo: Trevisan, 2012.
ESPANHA, Ministerio de Justicia. Código Penal y legislación complementaria. In Boletín Oficial del Estado. Disponível aqui. Acesso em 29 jul. 2016
GOENA VIVES, Beatriz. Criminal sanctions for corporations in Spain: a systematic approach after the 2015 Penal Code Reform. In Zeitschrift für Internationale Strafrechtsdogmatik ZIS 04/2016. p. 248- Disponível aqui. Acesso em 15 jul. 2016.
GÓMEZ-JARA DÍEZ, Carlos. Tomarse la responsabilidade penal de las personas jurídicas em serio: la culpabilidad de las personas jurídicas. In En letra: Derecho Penal. Año I, número 2 (2016), p. 24-54.
LIMA, Cezar de. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: a visão europeia. Canal Ciências Criminais. Disponível aqui. Acesso em 26 jul. 2016.