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A ressocialização entre o estigma social e o poder punitivo estatal

A ressocialização entre o estigma social e o poder punitivo estatal

Etimologicamente, ressocializar remete-se a noção de repetir o ato de socializar, ou seja, de pertencer novamente ao convívio no seio social. Tal idealização na seara penal se mostra muito mais dificultosa do que uma mera definição tirada dos dicionários. Primeiramente, ressalta-se, nas palavras de Klaus Hurrelmann, que socialização:

[…] é um conceito congregador para estruturas/configurações e processos, que reúne simultaneamente juízos de valor, esquemas emocionais, orientações do agir e prontidões do desenvolvimento de crianças e adultos, desde que estejam inseridos em um grupo ou cultura de interesses coletivos.

Tal abstração só se mostra presente num exercício individual dentro do cotidiano social, e acompanha o sujeito enquanto pertencente a uma coletividade, bem como condiciona a própria personalidade do agente durante sua vida, como se recolhe das palavras de Albert Scherr:

Ela abrange os processos que permeiam toda a vida de um indivíduo, nos quais este toma parte ativamente por meio da participação em comunicações sociais, ações sociais, língua, costumes sociais, regras, normas e saberes. E assim desenvolve a capacidade da linguagem e do agir tanto quanto a sua própria personalidade e uma imagem de si, uma identidade.

A partir da ideia apresentada, pode se relacionar a formulação teórica de socialização com o objetivo pretendido pela pena, qual seja, a ressocialização do indivíduo, que se traduz em uma reintegração social e uma nova adequação ao convívio coletivo, independentemente do período de tempo em que o apenado se manteve excluído desta interação com os demais membros do corpo social.

Francisco Muñoz Conde, criminólogo espanhol, entende que a ressocialização de um indivíduo no seio social pode ser alcançada através de dois caminhos dispares entre si, e identifica quais são os reflexos de se seguir por cada uma destas orientações.

O primeiro caminho se daria por meio de postulados psicanalíticos, justificando o sistema sancionatório pelos conceitos de “bode expiatório” e “projeção de sombras”, que simbolizariam, respectivamente, o apenado e o impulso que a sociedade enquanto coletiva sente em descarregar seus sentimentos de culpa sobre terceiros.

Já o segundo caminho, baseando-se nas idealizações da criminologia marxista, entende que a única maneira do caráter ressocializador da pena ser atingido de maneira satisfatória se daria com uma transformação estrutural nas atuais relações sociais de produção capitalista.

Em contraponto à onda moderna do radicalismo penal em matéria relacionada à política carcerária, que é conformada através do próprio ordenamento a se adequar aos anseios de um juízo moral da classe dominante, suprimindo garantias constitucionais, expandindo o direito penal que deveria ser tratado como ultima ratio, bem como instituindo valores que ensejam uma visão reacionária do sistema jurídico, vê-se a necessidade de uma teoria crítica que consiga desmistificar o senso comum e enfrentar essas imposições valorativas da onda conservadora atual, que através de um discurso de ódio coloca o preso na condição de bode expiatório de toda a criminalidade existente no país.

Através de uma fundamentação para além do direito positivado, busca-se nos princípios a efetivação das garantias decorrentes das lutas dos grupos minoritários travadas através dos tempos, sempre tentando limitar o ius puniendi estatal e evitar juízos arbitrários e prejudiciais. Principalmente a partir do princípio da dignidade da pessoa humana é que se busca fazer um paralelo entre o direito e a concepção de ressocialização, que se instituiu, segundo alguns doutrinadores, como um direito fundamental autônomo no próprio ordenamento. Como se vê nas palavras de Jason Albergaria:

[…] a ressocialização é um dos direitos fundamentais do preso e está vinculada ao welfare state (estado social de direito), que […] se empenha pro assegurar o bem-estar material a todos os indivíduos, para ajudá-los fisicamente, economicamente e socialmente. O delinquente, como indivíduo em situação difícil e como cidadão, tem direito à sua reincorporação social. Essa concepção tem o mérito de solicitar e exigir a cooperação de todos os especialistas em ciências do homem para uma missão eminentemente humana e que pode contribuir para o bem-estar da humanidade.

Entretanto, é cediço que o estudo principiológico não é o bastante para a aplicação do direito no mundo atual, sendo necessário, portanto, a positivação dessas garantias em documentos normativos, com a finalidade de solidificar esses direitos.

Em alguns países europeus, os textos normativos constitucionais dispõem expressamente a ressocialização do preso como a principal finalidade da pena, à guisa de exemplo, percebe-se na Constituição Italiana, ainda em vigor, que prescreve em seu artigo 27: “Le pene non possono consistere in trattamenti contrari al senso di umanità e devono tendere alla rieducazione del condannato”.

Ainda nas disposições constitucionais europeias, a Constituição da Espanha, no mesmo sentido, coadunando com a interpretação de que a ressocialização se traduz como finalidade da pena, estabelece em seu artigo 25:

Artículo 25. […]

2. Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir en trabajos forzados. El condenado a pena de prisión que estuviere cumpliendo la misma gozará de los derechos fundamentales de este Capítulo, a excepción de los que se vean expresamente limitados por el contenido del fallo condenatorio, el sentido de la pena y la ley penitenciaria. En todo caso, tendrá derecho a un trabajo remunerado y a los beneficios correspondientes de la Seguridad Social, así como al acceso a la cultura y al desarrollo integral de su personalidad.

Em nosso ordenamento jurídico não se faz necessário tal mecanismo de positivação em âmbito constitucional de maneira expressa no texto normativo, uma vez que os princípios sozinhos já vinculam (ou deveriam vincular) a atividade jurisdicional pátria, sustentada pelo ideal de dignidade da pessoa humana. Tal instituto se consagra apenas em disposições infraconstitucionais, mais expressivamente na Lei de Execução Penal, de 11 de julho de 1984.

Cabe ressaltar que toda atividade estatal, abarcando as ações do poder legislativo, executivo, e principalmente judiciário, devem ser direcionadas à efetivação dessas garantias consagradas constitucionalmente. Como principais garantidores destes direitos em matéria penal e processual, além dos legisladores, devem estar os magistrados, de maneira mais acintosa na fase de execução da pena, que devem estar alheios ao pensamento conservador e punitivista que se propaga, sem deixar que as imposições morais e políticas elevem o sadismo da prática estatal referente ao sistema carcerário.

Todavia, no contexto jurídico-social brasileiro, a ideia de ressocialização se mostra ambiciosa demais diante da estrutura penitenciária atual, sendo inconcebível que a finalidade pretendida na lei seja atingida através de um encarceramento em massa em condições deploráveis e sub-humanas, que não se preocupa em garantir minimamente os direitos dos encarcerados. Corroborando tal concepção, Cezar Roberto Bitencourt também leciona:

Um dos grandes obstáculos à ideia ressocializadora é a dificuldade de colocá-la efetivamente em prática. Parte-se da suposição de que, por meio do tratamento penitenciário – entendido como conjunto de atividades dirigidas à reeducação e reinserção social dos apenados -, o interno se converterá em uma pessoa respeitadora da lei penal. E, mais, por causa do tratamento, surgirão nele atitudes de respeito a si próprio e de responsabilidade individual e social em relação à sua família, ao próximo e à sociedade. Na verdade, a afirmação referida não passa de uma carta de intenções, pois não se pode pretender, em hipótese alguma, reeducar ou ressocializar uma pessoa para a liberdade em condições de não liberdade, constituindo isso verdadeiro paradoxo.

E segue no mesmo sentido, citando Antonio García-Pablos y Molina:

[…] a pena não ressocializa, mas estigmatiza, não limpa, mas macula, como tantas vezes se tem lembrado aos expiacionistas; que é mais difícil ressocializar a uma pessoa que sofreu uma pena do que outra que não teve essa amarga experiência; que a sociedade não pergunta por que uma pessoa esteve em um estabelecimento penitenciário, mas tão-somente se lá esteve ou não.

Diante disso, pode se concluir que a função primordial da ressocialização é (ou deveria ser) preparar o apenado para o seu reingresso no seio social, do qual foi afastado mediante um processo judicial que culminou em uma sentença proferida por um magistrado, reeducado e suficientemente reabilitado.

Tal retorno ao convívio deve se dar de maneira pacífica e gradativa, após uma profunda reflexão feita pelo indivíduo sobre seus atos anteriores e caminhos que busca trilhar no futuro; o que de fato não ocorre, visto os estabelecimentos prisionais não possuírem uma estrutura minimamente apta a incentivar uma reflexão por parte do condenado, muito menos prepará-lo para o reingresso no corpo social, sendo seu encarceramento mero instrumento de exclusão.

Alessandro Baratta, pioneiro no estudo da criminologia crítica, ressalta em seus trabalhos:

[…] na teoria do castigo e/ou naturalização, comete-se o que a filosofia prática chama de “falácia naturalista”: elevam-se os fatos a normas ou deduz-se uma norma dos fatos. No segundo caso, com a nova teoria da ressocialização, incorre-se na “falácia idealista”: apresenta-se uma norma contrafactora que não pode ser concretizada, uma norma impossível.

Para o jurista, deve-se fugir desse discurso ressocializador utópico, que não reintegra, mas estigmatiza, uma vez que o cárcere não se traduz em um ambiente com condições minimante adequadas a ensejar uma reintegração social, como se vê:

Não se pode conseguir a reintegração social do sentenciado através do cumprimento da pena, entretanto se deve buscá-la apesar dela; ou seja, tornando menos precárias as condições de vida no cárcere, condições essas que dificultam o alcance dessa reintegração.

Ante todo o exposto, claramente se percebe a ineficiência estatal em matéria de execução penal, que segue violando de maneira manifesta toda a construção principiológica e garantidora de direitos do nosso ordenamento jurídico, subvertendo o objetivo ressocializador da pena, e transformando-o em mera falácia punitivista que tem como objetivo excluir o agente da coletividade, desvirtuando a própria estrutura legal consagrada constitucionalmente.


REFERÊNCIAS

ALBERGARIA, Jason. Das penas e da execução penal. 3. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

BARATTA, Alessandro. Resocialización o control social – por um concepto crítico de reintegración social del condenado. In: ARAUJO JUNIOR, João Marcello (org.). Sistema penal para o terceiro milênio (atos do Colóquio Marc Ancel). 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1991.

______. Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da reintegração social do sentenciado. Alemanha: Universidade de Saarland, 2007.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.

______. Falência de Pena de Prisão: causas e alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

CONDE, Francisco Muñoz. Direito penal e controle social. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

HURRELMANN, Klaus; ULICH, Dieter. (Hrsg.). Neues Handbuch der Sozializationsforschung. Weinheim und Basel: Beltz, 1991.

SÁNCHEZ, Jesús-María Silva. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Tradução Luiz Otávio de Oliveira Rocha. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.

SCHERR, Albert. Sozialisation, person, individuum. In: SCHÄFERS, B. (Hrsg.). Einführung in Hauptbegriffe der Soziologie. 6. erw. Aufl. Opladen: Leske und Budrich, 2002.

VALOIS, Luís Carlos. Conflito entre ressocialização e o princípio da legalidade na execução penal. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2013.

______. Processo de execução penal e o estado de coisas inconstitucional. Belo Horizonte: Editoria D’Plácido, 2019.


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