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A Teoria do Romance em Cadeia de Dworkin e o processo penal brasileiro

A Teoria do Romance em Cadeia de Dworkin e o processo penal brasileiro

Na obra de Ronald Dworkin, jurista que dispensa apresentação, encontramos vasta contribuição teórica em relação ao processo interpretativo do Direito. Em parte notável de sua doutrina, Dworkin afirma que o processo interpretativo pode ser visto como um romance escrito por vários autores, sendo cada um deles responsável pela criação de um capítulo particular que formam o todo.

No entanto, como regra fundamental, cada autor deve prosseguir a evolução do romance a partir de onde seu antecessor parou, dando sempre continuidade ao sistema de interpretação do Direito.

Os autores do romance, como resta evidente, são os juízes. A necessidade de prosseguir com o capítulo a partir de seu antecessor, denota o tratamento do Direito com caráter de integridade, de modo que o juiz, ao proferir sua decisão deve, sempre levar em consideração a história já escrita, tarefa que apesar de complexa confere harmonia ao sistema jurídico.

No entanto, nada impede que o juiz escreva um capítulo que não mantenha a concordância nominal às diretrizes estabelecidas até então, desde que o faça baseando sua decisão nos princípios que sustentam o Direito, rechaçando completamente o decisionismo baseado por argumentos teratológicos, meramente de vontade ou, ainda, metajurídicos.

Tal oportunidade – de o magistrado escrever seu capítulo do romance a partir de um novo norte histórico, Dworkin denomina interpretação construtiva. O contrário disso, como dito, quando tal rumo decisório se baseia em situação alienada aos princípios de Direito, conflagra uma interpretação destrutiva, situação abominável.

Em paralelo, aproveitando a abertura conceitual trazida por Dworkin, é possível refletir sobre o Processo Penal Brasileiro e a inescusável precariedade do romance escrito no deslinde do processamento dos delitos.

A prática da Advocacia Criminal revela que o romance do processo penal é escrito basicamente na seguinte ordem factual, pelos seguintes autores:

  1. Delegado de Polícia Civil: Produz relatório acerca das investigações realizadas no Inquérito Policial, valorando em muito os relatos dos Policiais Militares condutores;
  2. Promotor de Justiça: Oferece denúncia baseando-se unicamente nos elementos de informação – que majoritariamente são contrários ao investigado – relacionados pelo Delegado de Polícia, que por sua vez baseou-se nos Policiais Militares condutores;
  3. Juiz de Direito: Admite a peça acusatória, sendo raríssimas as ocasiões em que realmente realiza juízo de admissibilidade levando em consideração o artigo 41 do Código de Processo Penal, determinando intimação para apresentação de resposta à acusação. Nesse estágio, o magistrado concordou com a interpretação do MP, que por sua vez confiou na interpretação do Delegado de Polícia, que por sua vez valorou preponderantemente as declarações dos Policiais Militares condutores.
  4. Defesa Técnica: Apresenta resposta à acusação com diversas teses defensivas, apontando as inconsistências acusatórias;
  5. Juiz de Direito: Ignora completamente a exposição defensiva e determina data para AIJ. Em audiência, os elementos de informação são convertidos em provas processuais pelo mero ato de “confirmação do que fora dito em sede policial”;
  6. Juiz de Direito: Após alegações finais, o magistrado profere sentença que, em muitas ocasiões, deixa de enfrentar as teses defensivas, acolhendo a condenação conforme a manifestação do Parquet, em todo ou na maior parte. A escusa do enfrentamento de todas as teses defensivas arguidas é baseada no entendimento – inacreditável – de que a fundamentação pela condenação acolhe a tese distinta da absolvição ou qualquer outra arguida pela defesa. Portanto, não haveria ausência de fundamentação, mas mero acolhimento de tese contrária àquelas arguidas pela defesa do réu.

Desse modo, em tal estado de coisas processual, nota-se que o romance escrito no processo penal hipotético segue uma cadeia – não interpretativa, mas meramente replicadora do que fora colhido por ocasião do procedimento investigatório. Não se trata de os escritores estarem escrevendo novos capítulos do romance, mas meramente replicando-os, alterando pouquíssimos trechos.

A interpretação da interpretação da interpretação gera, portanto, um processo teratológico, inútil para esclarecer os fatos e incapaz de aplicar o Direito correto, culminando, quase sempre, em condenação.

Não obstante, ressalto que tal realidade pode ser influenciada pela alta carga de trabalho imposta aos servidores públicos que, sem recorrer à via da replicação interpretativa desnuda da devida análise técnica do Direito, seria impossível cumprir as metas impostas pelos órgãos de regulação.

No entanto, é preciso consignar: aquele que optou por pertencer ao funcionalismo público está ciente da condição de sobrecarga de trabalho, de modo que em se tratando de processo penal, ao escolher atuar de maneira mais “simplista”, cidadãos serão aprisionados ao arrepio do Direito posto, até que se consiga a reversão de tais decisões em instâncias superiores.


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