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A tolerância social perante a violência social

Por Murillo Heinrich Centeno. É inegável que vivemos em uma época de crise; crise, quiçá, sem precedentes no que diz respeito à geração atual. A situação de pandemia global que já se perfaz há mais de um ano trouxe mudanças para a vida de todos.

A tolerância social

No último dia 19, nosso país ultrapassou a marca de 500 mil mortos em decorrência do coronavírus – isso, de acordo com dados oficiais. Existe grande probabilidade de termos um número real muito superior, uma vez que resta virtualmente impossível testar e registrar o número total de casos (sem contar problemas de gestão governamental).

Em meio a tanto sofrimento, tão grande a tragédia, fica a impressão de que o sofrimento propriamente dito está sendo normalizado. Essa normalização do sofrimento, a queda de empatia de uma população que já vem há tempos flertando com o nazifascismo pode ser considerada, em grau maior ou menor, uma consequência (in)direta desse momento tão difícil que a humanidade vive.

Com efeito, esta análise deve ser tomada a partir de uma visão holística, ou seja, não se pode ignorar os demais fatores que contribuem para que este aprochego para com a brutalidade tenha se enraizado no subconsciente social. A valer, a insegurança pública, a sensação de impunidade (fomentada muitas vezes por canais midiáticos enviesados), a constante dificuldade econômica enfrentada pela grande maioria da população, entre tantos outros motivos, podem ser elencados e contribuem de maior ou menor forma para a origem da situação ora comentada.

Dentro deste panorama – onde a violência e o sofrimento são relativizados, normalizados, quiçá desprezados – a questão da violência perpetrada pelos agentes estatais vem ganhando conivência social, seja por indiferença ou pelo simples fato de que parte da sociedade de fato acredita que direitos humanos e garantias individuais devem sim ser ignoradas – pelo menos até que sofram na pele a truculência e o peso da bota do Estado –, para que um número maior de indesejáveis seja neutralizado.

A violência policial contra indivíduos e grupos, também chamada de violência oficial, é uma constante nas sociedades modernas e contemporâneas. Contudo a sua forma varia conforme o grau de tolerância, governamental ou popular, levando a que, em certos lugares, haja mais vigilância sobre a ação policial do que em outros. Assim, se em certas cidades o seviciamento de um indivíduo pertencente a um grupo étnico ou social discriminado é suficiente para provocar um debate público acalorado, em outras, fatos dessa ordem ou mais graves não despertam igual interesse na mídia ou na população como um todo. (MACHADO; NORONHA, 2002)

A valer, não seria exagerado afirmar que a violência estatal faz parte de uma política pública, onde muitas pessoas, em especial as classes dominantes e a classes em ascensão se beneficiam de alguma forma. A clientela da persecução penal tem endereço, etnia e poder aquisitivo muito bem definidos no Brasil e isso não é e nunca foi segredo. Temos um dos aparatos policiais mais letais do mundo. Muitos clamam pela volta do regime militar, mas este já está instaurado em determinados locais, onde qualquer direito garantido pelo Estado sedizente democrático existem só no papel.

Esse elo entre abuso policial e a linguagem do insulto racial se confirma em uma miríade de histórias contadas por pessoas negras em todos os níveis socioeconômicos na sociedade brasileira. Muitos pesquisadores têm documentado casos rotineiros de homens não-brancos em bons carros que são parados pela polícia devido à suposição de que eles apenas poderiam possuir tais carros se os tivessem roubado. (FRENCH, 2017)

Estudando história, frequentemente surge o questionamento sobre como as pessoas, especialmente na Alemanha e Itália do século XX, apoiavam os regimes totalitários que aterrorizaram o mundo na época. Nos dias de hoje, nossa geração está podendo ver este processo com os próprios olhos. A conivência, a tolerância para com a barbárie é o primeiro e mais importante passo para que o nazifascismo possa nascer. Assim, sempre que se toma uma decisão de não tomar decisão, de indiferença, de neutralidade, acaba-se somando para o lado antidemocrático.

Talvez se todos aqueles que negam sua contribuição para a situação atual das coisas de fato não tivessem sido omissos, principalmente nas eleições, muito do sofrimento, das perdas, teriam sido evitados. Conforme Dante Allighieri, já dizia em sua Divina Comédia: “No inferno os lugares mais quentes são reservados àqueles que escolheram a neutralidade em tempo de crise”.

REFERÊNCIAS

FRENCH, Jan Hoffman. Repensando a Violência Policial no Brasil: Desmascarando o Segredo Público da Raça. Revista Tomo. Nº 31, p.9-40, jul/dez 2017.

MACHADO, Eduardo Paes; NORONHA, Ceci Vilar. A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas. Sociologias. Ano 4, nº 7, p.188-221, jan/jun 2002.

PORTO, Douglas; BAPTISTA, Sara; Espina, Ricardo. Brasil ultrapassa 500 mil mortes por covid-19. Portal UOL. 16.jun.2021. Disponível em: < https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/06/19/brasil-ultrapassa-500-mil-mortes-pode-covid-19.htm>. Acesso em: 22.jun.2021.


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