A tutela penal dos direitos humanos nas democracias de opinião (III)
Por Fábio da Silva Bozza
No artigo da semana passada o nosso objeto de análise foi a violência, entendida como toda forma de negação de necessidades humanas e, por consequência, de direitos humanos.
Destacou-se a necessidade de se entender, a partir do interacionismo simbólico, que o comportamento criminoso não possui uma característica intrínseca que o define como tal, mas que se trata, apenas, de um processo político de definição de determinados comportamentos como lícitos ou ilícitos. Dessa forma, é possível perceber que nem todo comportamento que nega necessidades humanas e, por consequência, direitos humanos é considerado ilícito. Pense-se na poluição ambiental, exemplo de comportamento que lesiona um dos bens jurídicos mais importantes dos indivíduos, que, como regra, configura comportamento lícito. Da mesma forma, existem comportamentos que não provocam qualquer dano social, e são considerados ilícitos, por exemplo, o consumo de drogas consideradas ilícitas.
Diante do acima destacado, surge a necessidade de se pensar o papel do sistema de justiça criminal na proteção de direitos humanos. Para tanto, deve-se refletir a respeito da função que ele cumpre na sociedade capitalista. E para atingir esse objetivo é fundamental a observação das práticas punitivas a partir de uma economia política da pena.
Primeiro, a intervenção do sistema de justiça criminal sobre os conflitos e problemas sociais é meramente simbólica. Por não possuir qualquer função instrumental, não se apresenta como meio de efetiva solução de problemas. Mais que isso, nos dizeres de Vera Andrade, o sistema de justiça criminal apresenta uma eficácia invertida (ANDRADE, 2012, p. 304).
Desde o ponto de vista apresentado pela criminologia crítica, em especial pelas obras de Rusche e Kirchheimer (Punição e estrutura social), Foucault (Vigiar e punir) e Melossi e Pavarini (Cárcere e fábrica), a prisão, como instituição complementar ao mercado de trabalho (metáfora da “fábrica”), o cárcere funciona não como instrumento de prevenção da criminalidade por meio da ressocialização e/ou intimidação de potenciais criminosos, mas sim como instrumento de construção de criminosos. Essa construção social do criminoso se realiza por meio da lógica da seletividade. A desigualdade na criminalização do inimigo interno, a seletividade, aparece como lógica estrutural de funcionamento do sistema penal, na qual o cárcere ocupa um lugar fundamental, pois estigmatiza e perpetua os indivíduos no status social em que se encontram (ANDRADE, 2012, p. 306-307).
Às reais funções de reprodução e institucionalização da desigualdade social promovidas pelo cárcere, acrescenta-se uma função simbólica, que não é menos importante. A seleção de criminalizados advindos das classes mais baixas da população (dentre todas as pessoas que praticam delitos, e que provêm de todas as classes sociais) produz um imaginário social sobre o estereótipo do criminoso. E referido imaginário produz dois principais efeitos de legitimação. “Em primeiro lugar, a legitimação da mesma forma de agir do sistema, dado que o estereótipo do criminoso corresponde, sobretudo, às características dos indivíduos pertencentes às classes mais baixas e marginais. Em segundo lugar, uma legitimação das relações sociais de desigualdade, da situação de desvantagem dos grupos mais baixos na escala social, porque, precisamente, nestes grupos se encontrariam as tendências a realizar ações penalmente relevantes; em geral, a imagem da criminalidade promovida pelo cárcere, e a percepção dela como uma ameaça para a sociedade devido a atitudes das pessoas e não à existência de conflitos na sociedade produz um desvio de atenção do público, dirigida de modo privilegiado ao “perigo da criminalidade”, antes que à violência estrutural.” (BARATTA, 2004, p. 346 – o negrito não consta no original)
Segundo, existem exemplos claros que demonstram que a intervenção penal, além de inútil, produz altos custos sociais. Apenas para citar um exemplo, é indiscutível que a criminalização de determinadas drogas consideradas ilícitas acrescenta ao grave problema da dependência química (ainda que seja de um pequeno grupo de pessoas comparado ao enorme grupo de consumidores recreativos e esporádicos que não são atingidos pela dependência) outros graves problemas (KARAM, 2015).
Terceiro, estudos realizados por instituições de defesas de direitos humanos demonstram que o funcionamento do sistema de justiça criminal produz muito mais violações de direitos humanos do que sua proteção. Referidas violações são produzidas sempre em nome da proteção dos direitos humanos das “pessoas de bem”, e ocorrem: a) por ilegalidades realizadas por órgãos policiais, b) por meio de legislações que contrariam direitos fundamentais consagrados na Constituição e em normas internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica – veja-se, por exemplo, a lei antiterrorismo, que admite a punição de atos preparatórios indeterminados de terrorismo, também um conceito indeterminado –, c) por meio da execução penal em estabelecimentos penitenciários que violam diversos direitos fundamentais do condenado. Afinal, o cárcere é um local privilegiado de violações de direitos humanos.
Dos argumentos acima é possível concluir que o direito penal não é um instrumento adequado a proteger as pessoas contra a violência contingente. Ao contrário, produz mais violência e desigualdade, o que resulta em mais violência estrutural e institucional.
No próximo artigo apresentaremos alguns traços de uma política criminal alternativa que pode ser utilizada para promover uma proteção efetiva dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mão da criminologia. O controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2012.
BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. Por la pacificación de los conflitos violentos. In Criminologia y sistema penal. Buenos Aires: B de F, 2004.
KARAM, Maria Lúcia. Legalização das drogas. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2014.