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A tutela penal dos direitos humanos nas democracias de opinião (IV)


Por Fábio da Silva Bozza


No artigo anterior demonstramos a impossibilidade de o direito penal ser utilizado como instrumento de tutela de direitos humanos contra ações que configuram violência contingente, individual. Com fundamento na criminologia crítica, restou demonstrada a chamada eficácia invertida do sistema penal, que produz cada vez mais violência. Resta, agora, refletir sobre a possibilidade de o direito penal funcionar como instrumento de prevenção de violência institucional.

A violência institucional consiste em “processos e ações predatórias, fraudulentas, produzindo mortes, mutilações, desnutrição, subalimentação, e todas as formas de exploração violenta e fraudulenta da coletividade”, e é encoberta pelo sistema (CIRINO DOS SANTOS, 1980, p. 40). É a violência realizada contra a sociedade e feita por instituições políticas e jurídicas do Estado.

As instituições políticas são os aparelhos do poder organizado de classe que permitem a organização e disciplina das relações sociais. As instituições jurídicas constituem os fundamentos normativos da ordem social, e disciplinam as relações sociais conforme as necessidades e exigências do poder organizado de classe. E são compostas não apenas pela legislação, mas também por órgãos administrativos e judiciários, que aplicam a lei e executam as sanções aos casos de violação de normas que realizam a disciplina legal das relações sociais (CIRINO DOS SANTOS, 1984, p. 96).

O Estado, que pode ser entendido como instituição central de controle social do qual emana a violência institucional, disciplina as relações sociais através do direito e protege essas mesmas relações por meio de instituições como forças armadas, polícia, justiça, prisão, etc.

Se a sociedade capitalista é caracterizada por relações de desigualdade e opressão, produzidas pela classe dominante em relação à classe dominada, são as instituições jurídicas (legislação) e políticas (Estado, principalmente por meio da polícia, justiça e prisão) que garantem referidas relações.

Assim, o Estado, como principal instituição de controle social, pode ser interpretado como instrumento de produção e reprodução das desigualdades instituídas pelo sistema capitalista (CIRINO DOS SANTOS, 1984, p. 96).

A forma legal do capitalismo, representada, principalmente, pelo direito do trabalho e pelo direito penal, permite a proteção jurídica dos interesses das classes dominantes em detrimento da classe dominada. O direito, como a forma legal do modo de produção capitalista, institucionaliza a aquisição e ampliação da propriedade privada e, da mesma forma, por meio do direito penal protege essa forma de organização social.

Como quem elabora as leis penais representa os interesses dos donos dos meios de produção, as leis se dirigem a proteger os bens jurídicos da classe dominante. Dessa forma, sob o discurso ideológico de tutela dos bens jurídicos mais importantes da sociedade, o que de fato se verifica é a criminalização de componentes da classe dominada que realizam ações que violam as leis. No entanto, os danos sociais produzidos pela classe dominante que instrumentaliza o Estado e suas instituições costumavam ficar fora do âmbito das proibições legais.

E foi por conta das constatações acima expostas que a criminologia crítica das décadas de setenta e oitenta propôs estratégias de proteção da sociedade contra a violência institucional.

A violência institucional se manifesta de diversas formas, e pode ser categorizada conforme a natureza do dano social que produz. Pode ser classificada em: 1) abuso do poder econômico, que compreende a) exploração predatória da força de trabalho e dos recursos naturais, b) exploração fraudulenta da economia popular e do consumidor, e c) exploração de prestígio, tráfico de influência e corrupção; e 2) abuso do poder político, que pode ser definido como a prática de atos por parte de agentes públicos, inclusive agentes do sistema de justiça criminal, consistente em violações pessoais ou patrimoniais (CIRINO DOS SANTOS, 1980, p. 44-45).

Sem dúvida, são graves formas de violência, e apresentam as seguintes características: a) possuem como vítimas coletividades anônimas, que sequer possuem consciência de sua condição de vítimas, b) pela grave intensidade dos danos produzidos, muito superiores aos produzidos pela criminalidade de rua, c) seus autores utilizam métodos sofisticados para a realização dessas condutas, de difícil apuração pelas agências de controle, e d) são danos praticados por corporações ou grupos que possuem poder suficiente para influenciar na elaboração e aplicação das leis, de forma que seus privilégios de classes os transformam em pessoas imunes ao alcance da legislação penal (CIRINO DOS SANTOS, 1980, p. 44-45).

Diante da gravidade do problema, penalistas e criminólogos entenderam como necessário o desenvolvimento de um conjunto de estratégias destinado à contenção de referidos comportamentos, incluindo a criminalização dessas ações e de seus respectivos autores, pessoas físicas e/ou jurídicas (CIRINO DOS SANTOS, 1980, p. 48-49).

E aqui o principal engano das propostas da criminologia crítica da época, justificável pela falta de experiência em relação à política criminal proposta: acreditar que a gravidade do problema justificaria a intervenção penal nas áreas acima indicadas, de forma que referida proposta consistiria em uma política criminal alternativa, que apontava na direção da superação das desigualdades produzidas e reproduzidas pelo sistema de justiça criminal tradicional.

À época, não se tinha conhecimento criminológico suficiente para que a criminalidade econômica fosse entendida a partir da “relação funcional intercorrente entre processos legais e processos ilegais de acumulação e da circulação do capital e entre esses processos e a esfera política” (BARATTA, 1978, p. 14-15), de forma que o projeto de criminalização das formas ilegais de acumulação e circulação do capital fosse percebido como um instrumento de proteção e fortalecimento da violência institucional, e não como um instrumento de proteção de direitos humanos.

Dessa forma, uma política criminal destinada à tutela de direitos humanos deve: a) ter como premissa a consciência da total falta de adequação do direito penal como instrumento de proteção de interesses sociais, b) reconhecer que o direito, como forma legal da organização capitalista, jamais poderá ser utilizados como instrumento de superação dessa forma de organização social, de modo que a utilização do direito penal, em qualquer âmbito, apenas reproduz e fortalece as contradições que caracterizam a sociedade capitalista, e c) diante da existência do direito penal como forma de controle social no capitalismo, deve-se colocar o ser humano (e não a organização social capitalista) no centro da ordem jurídica, e apenas utilizar o direito e, em especial, o direito penal como instrumento de limitação ao poder punitivo estatal, e não como um instrumento capaz de promover a tutela de direitos humanos.

Nesse quadro, como o direito penal é instrumento inadequado a proteger a sociedade de qualquer tipo de violência (individual ou institucional), tutelar direitos humanos consiste única e exclusivamente em evitar os danos sociais decorrentes da violência institucional produzida pelo direito penal. Proteger o ser humano e suas necessidades e, por consequência, os verdadeiros direitos humanos significa abolir o direito do capital e, em especial, o direito penal que o protege.


REFERÊNCIAS

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e política penal alternativa. Revista de Direito Penal. n. 23, Rio de Janeiro: Forense, 1978.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. As raízes do crime. Um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Violência estrutural. Revista de Direito Penal. n. 28, Rio de Janeiro: Forense, 1980.

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