A vagueza conceitual e o delito de associação criminosa
Por Daniel Kessler de Oliveira
Em tempos de grandes operações policiais, de processos criminais sendo alvos de grandes discussões pela mídia e nas rodas de amigos, inevitavelmente, muitas questões necessitam de um melhor aprofundamento para que suas conceituações não sejam distorcidas, tampouco seus fundamentos desprezados.
Ganha notoriedade em grandes operações a comum menção ao termo “associação criminosa”, enfatizando a prática do delito descrito no Art. 288 do Código Penal.
A inclusão deste crime na denúncia, traz a ideia de uma organização criminosa, ou seja, indivíduos que resolveram se associar para a prática de ilícitos penais.
Não se discute a relevância de tal tipificação, que visa (ainda que na errônea prática de se esperar as soluções pelo Direito Penal) coibir a prática de crimes que resulte de uma associação de duas ou mais pessoas para este fim.
A problemática, em nosso sentir, está na utilização desmedida de tal instituto, com propósitos, no mínimo, questionáveis em termos de um processo penal que deve ser concebido à luz das diretrizes constitucionais.
Não são raras as oportunidades em que se percebe a alusão ao delito de associação criminosa, na tentativa de se criar uma organização delitiva, no propósito, muitas vezes, de dar ao fato gravidade inexistente e com isto prejudicar os Acusados e valorizar o trabalho dos órgãos de persecução penal.
O problema é que resulta daí uma verdadeira banalização do termo, que não permite a devida adequação dos elementos do Art. 288 do Código Penal a determinados casos concretos.
Com isto, os merecedores desta reprimenda penal acabam, por vezes, a serem beneficiados, pois o nível de banalização do instituto conduz a uma insegurança conceitual muito grande que pode prejudicar a sua efetiva aplicação.
O Art. 288 possui elementos próprios que não podem ser desprezados por qualquer visão utilitarista ou qualquer outro propósito por parte dos atores judiciais.
É sabido que consiste em um crime de perigo abstrato, na medida em que não é necessária a verificação concreta do dano ou de ameaça a algum bem jurídico que a norma penal tutele. Todavia, isto sempre deve ser avaliado com extrema cautela.
Ora, se não é necessário que se demonstre o efetivo dano, os limites para que a capitulação legal não adentre em uma seara de arbitrariedade estatal é extremamente tênue.
Se consagra na jurisprudência a percepção de que para a ocorrência do crime de associação criminosa não se faz necessário a efetiva comprovação do crime que teria sido praticado pelos agentes que se associaram.
No entanto, como se atribuir a associação para o fim específico de cometimentos de crimes, quando não restar demonstrada a ocorrência destes?
Se o entendimento fosse apenas no que tange ao momento delitivo, se entenderia. Ou seja, para o caso de se descobrir um grupo de indivíduos que planeja uma prática criminosa, antes de dar início aos atos executórios. Neste caso, não poderiam ser punidos pela tentativa, em razão de estarem em atos meramente preparatórios, como se percebe pela análise do Art. 14, II e Art. 31, ambos do Código Penal, mas lhes caberia uma punição por associação criminosa.
Poderia, em um caso concreto, se verificar que três ou mais pessoas se associaram para cometer crimes ainda que este não tenha se verificado. Por isto, se pode falar em desnecessidade de demonstração efetiva do crime.
Agora, o que não se pode permitir é a inclusão do Art. 288 do Código Penal na narrativa da denúncia sem ao menos demonstrar os elementos básicos do tipo penal.
O delito exige a união de três ou mais pessoas com a finalidade específica de praticarem crimes.
Assim, indispensável o dolo dos indivíduos, bem como o liame subjetivo entre os agentes para a prática dos delitos.
Portanto, necessita estar demonstrada que houve uma associação e que esta se deu para o cometimento de crimes.
Isto necessita estar devidamente demonstrado, sob pena de se punir apenas a associação entre pessoas (sem a demonstração da finalidade) ou punir o delito praticado por três ou mais pessoas, o que já estaria tutelado pelo concurso de pessoas.
Assim, o fato deve transpor os limites do concurso de agentes para adentrar os elementos do delito próprio de associação criminosa.
Ora, o propósito de associação para praticar um crime é elemento que configura as hipóteses de concurso de pessoas, trazidas no Art. 29 do nosso Código Penal.
Ou seja, dois ou mais indivíduos unem esforços com o propósito de praticar o ilícito penal, neste caso, temos o concurso de agentes, o qual resultará a punição de cada indivíduo de acordo com a sua culpabilidade e pode significar um aumento da pena a ser imposta.
Então, parece óbvio que a prática do delito de associação criminosa exige algo para além disto.
Vale salientar que não se pode cair no reducionismo de entender que o simples fato de ser três pessoas, já configuraria o delito de associação, como se o fator numérico fosse elemento apto, por si só, a diferenciar o concurso de agentes da associação criminosa.
Assim, não bastaria a mera união de vontades para a prática do crime, se exige uma prática reiterada e uma associação usual com esta finalidade.
Neste linha, a lição de PIERANGELI (2013, pp. 981-982), é precisa em referir que no delito associativo existe algo mais do que um acordo, porque a coparticipação (concurso de agentes) é uma associação ocasional para a prática de um ou alguns crimes determinados, enquanto a associação para delinquir é uma associação de caráter permanente com a finalidade de cometer uma série indeterminada de crimes.
O concurso de agentes não exige isto, pode ser algo momentâneo, uma união de desígnios pode ter se dado no momento da prática do crime, sem necessidade de um planejamento prévio.
Entretanto, é possível que haja o planejamento prévio sem que isto exceda os limites do mero concurso de pessoas, como por exemplo, três indivíduos que combinam de matar um quarto elemento ou três indivíduos que planejam um assalto a uma loja.
Assim, o delito de associação criminosa exige para além da união e finalidade de praticar crime, que seja uma associação prévia, com alguma organização e que não seja para a prática de um delito apenas, mas sim uma prática continua de diversos crimes.
Portanto, nos parece indevida a abusiva a atual utilização do crime de associação criminosa, pois a finalidade desta utilização se distancia de um propósito claro de efetiva e adequada punição do indivíduo por um fato criminoso.
O delito de associação criminosa vem servindo como uma hipótese de aumento da punição e de criação de um estigma criminoso sobre as pessoas acusadas, trazendo diversas conseqüências jurídico-penais.
Ao estarmos diante de uma associação criminosa, o fato ganha contornos graves e qualquer processo penal passa a ter um outro status. Assim, o ódio punitivo se acende e as conseqüências em termos de processo penal, de respeito às regras do jogo processual podem ser desastrosos.
Assim, o que se busca é apenas que a inclusão deste delito em uma denúncia ou condenação venha acompanhada da efetiva demonstração de seus elementos, não podendo se permitir seu manejo utilitarista com propósitos reprováveis em termos de processo penal.
Fato similar se verifica no delito de associação ao tráfico, tipificado no Art. 35 da Lei de Drogas (Lei n.º 11.343/2006).
Neste ponto, a problemática é ainda mais grave, merecendo uma análise mais específica em outro momento, pois exige apenas duas pessoas e traz expressamente que a prática não precisa ser reiterada, trazendo elementos distintos para a sua configuração.
O ponto que pretendeu se analisar no presente artigo, é que em um processo penal constitucional não há espaço para concepções utilitaristas e para jogo de palavras que se apresentem com uma finalidade de fazer do processo penal um instrumento de condenação onde quanto maior a pena, maior o nível de justiça alcançado.
Não há como se admitir que a vagueza conceitual seja preenchida em um jogo lingüístico que se permita amoldar qualquer conceito a qualquer contexto fático, desprezando os limites da própria linguagem e ignorando os preceitos conceituais dos institutos penais.
Portanto a banalização do delito de associação criminosa necessita ser rechaçada por nossos julgadores, sob pena de se enraizar uma prática indevida e injusta que pode cobrar um preço muito alto na vida de diversas pessoas.
REFERÊNCIAS
PIERANGELI, José Henrique. Código Penal Comentado. São Paulo: Editora Verbatim, 2013.