A valoração paralela dos princípios morais: a norma das ruas
Por Iverson Kech Ferreira
Chegou cambaleando e muitos pensavam que lá viria um sujeito cujo passatempo a noite toda tivera sido num bar ou ao relento, e contaria mais um caso anormal e invariavelmente surreal, relatando as torturas que sofreu nas mãos de extraterrestres do planeta Vulcano.
Mas o que ocorreu em seguida foi muito diferente.
Estava responsável pelo ofício de escrivão naquele dia, responsável pelo Termo Circunstanciado, numa delegacia no centro da cidade, quando ao passar de tantos “clientes” trazidos pela polícia militar, entre eles, vários usuários de drogas, maconha em sua maioria, levados sob o prisma de usuário e muitos ainda, somente por carregar consigo algumas moedas jogadas no bolso e alguns trocados, recebiam o chamamento de traficante. Ainda, há minha pretensa vontade de escrever sobre o tema drogas, mas por enquanto, nos ateremos à crítica das formações sociais e como essas formações são enxergadas pelos estabelecidos na sociedade, entre estes, o próprio Estado.
Este senhor que adentrou a porta de fato era um morador de rua, que precisava relatar um caso que havia “presenciado”, a priori, na madrugada anterior, e que, segundo suas palavras: “Preciso desabafar, pois aqui não tenho casa, mas pretendo ir pro Céu de meu Senhor quando morrer, e lá, ter ao menos uma proteção sobre minha cabeça.”
Após tais palavras pensamos ser mais um alienado, mais uma história sem sentido, tão comum em delegacias.
O homem pôs-se a falar, primeiro quis contar um pouco da sua história para que não duvidássemos de suas palavras desde inicio, como se necessitasse de um fato que abonasse seus relatos e este fato seria seu passado. Ao começar seu colóquio, estagiários e outros investigadores se aproximaram para ouvir as intempéries, loucuras e anormalidades que sairiam daquela mente protegida pela longa e vasta cabeleira, branca e acinzentada.
De inicio, disse que estudara direito na PUC em São Paulo no fim dos anos 60, mas abandonou o curso no sexto período, pois não tinha como continuar pagando e, “rebelou-se contra o sistema”, uma vez que seu pai havia se suicidado e sua mãe casara com outro, que a puxou para o mundo das drogas. Três meses após o falecimento de seu pai, sua mãe havia sido presa por tentar levar drogas no lugar de seu padrasto para alguns clientes. Perdeu o emprego, por consequência das fofocas maldosas que diziam ser sua família desgraçada e seu futuro deveria seguir o mesmo trajeto. Não tinha irmãos, pois haviam morrido “após os primeiros suspiros de vida”, segundo o velho.
Questionado a respeito do fato que o trouxera até ali e que gostaria de nos contar, disse-nos que havia matado um rapaz na noite anterior, com uma pedra: “Joguei a pedra no rosto dele enquanto ele se arrumava pra dormir, quando puxou o papelão para o rosto, aproveitei o momento de distração.” Segundo nosso confessor tudo ocorreu por uma boa causa. O relato foi sucinto, todavia com um primor e um palavreado que não se encontra por aí nos dias de hoje, claro e erudito. Disse-nos que seu colega das ruas havia traído a confiança do grupo, que sempre se encontrava para dormir no mesmo local e sempre no mesmo ponto se reuniam, debatiam sobre o dia e muitas vezes dividiam os espólios, ou melhor, “as sobras” do dia.
Foi sentenciado à morte pelo grupo todo, que compunha-se em número aproximado de quarenta e dois sem tetos que moravam juntos, abaixo de um viaduto próximo ao centro da cidade. Entre esses haviam quatorze famílias, contando com crianças de colo, adolescentes e recém nascidos. Segundo nosso relator, o executado teria ferido um preceito principal do grupo, que por ser o mais intenso de todos os mandamentos entre eles, teria que ser execrado da vida. Antes de elegerem o verdugo para o golpe fatal outra reunião se deu, dessa vez a respeito de uma possibilidade da alteração da pena, uma vez que alguns levavam consigo consideração e afeto pelo acusado. Segundo o idoso, a reunião se deu enquanto o “réu” não estava presente, todavia, para o conselho formado era inafastável o crime, quando muitos viram o que houve, mas nada fizeram para acalmar os ânimos do sentenciado no tempo certo.
O rapaz estuprou uma menina, filha de um homem usuário de drogas que convivia com o grupo, entre todos eles, o mais influenciado pelas abstrações da química. A menina tinha doze anos e sempre andava com parte do grupo catando latinhas e papelão durante o dia. O assassino confesso nos disse que o estupro praticado contra alguém do grupo, seria crime combatido com a pena de morte. A reunião se daria para tentar amenizar a lei verbal que suscitava a penalização fatal transformando-a em uma pena mais suave: o banimento.
Questionado a respeito dessa pena (ainda não sendo levado totalmente em consideração na delegacia seus relatos), o ancião disse que a pena de banimento leva a morte por consequência. Uma vez expulso o individuo não pode cruzar os locais determinados pelo agrupamento nem ao menos ter conversa com qualquer um que esteja convivendo dentro das bordas do amontoado. Contudo, se for encontrado nessas situações, a morte por apedrejamento é certa. Tentando amenizar a resolução do conselho, nosso relator disse que o autor do estupro era pessoa nova e que não merecia ser privado de sua vida, o maior bem que possuía. Por sua vez, a maioria teria dito que as regras são conhecidas por todos os membros do grupo e que a única pena de privação da vida seria pelo crime de estupro.
Questionado o porquê desse crime levar a tal pena dentro de sua mini sociedade o ancião foi assertivo naquilo que definiam como norma moral: não se pode abusar de ninguém que não queira ser abusado, menos ainda pessoas que possuem uma mutua confiança que leva em conta suas atitudes e de outros conviventes no interior do mesmo espaço. Para o senhor e para todo o grupo a única dignidade que teriam de fato era dizer com quem, quando e onde fariam sexo ou utilizariam drogas, mas não seriam forçados a isso. Se coagidos a realizar atos contrários, como o sexo e o uso de drogas, a morte no primeiro caso e o banimento no segundo teria a força de uma pena moral, nas bases dos conhecimentos de convivência adquiridos ao longo da coexistência do grupo de quarenta e duas pessoas.
Ficou claro que para essa comunhão de pessoas que existia entre os pilares dos viadutos que as normas evitavam conflitos por via da sanção que era imposta automaticamente. Para eles, o agir moral dentro do estipulado era essencialmente protegido, mas seus resvalos eram tratados com o furor das penas. Percebe-se em toda a narrativa do idoso que somente manteriam o elo da sociedade se tratassem os crimes ou as discussões que por ventura venham a existir no interior da comunhão com toda a força sancionadora possível.
Para isso, a pena de morte não era uma pena apenas para o estuprador, mas também, um exemplo a ser seguido, em definição; um meio de neutralização dos indivíduos inertes aos costumes aceitos pelo agrupamento. A justificativa da morte aduz a teoria da prevenção especial negativa, quando sujeitos perigosos tornam-se inimigos uma vez frustrando as expectativas ao invés de mantê-las. Todavia, a sanção (pena de morte) é ainda mais emblemática quando se escolhe alguém do meio para pôr a cabo a sentença, fazendo com que experiências alternativas perfaçam a cognição das pessoas, trazendo um malefício ainda maior do que o próprio banimento.
Percebe-se que as normas morais dentro do grupo são fortes; quando questionado dos motivos de uma pena tão enérgica o ancião percebe a importância da vida, mas também demonstra preocupação com o futuro do grupo: “Não sei se é certo fazermos isso, me parece mesmo que não é, mas nesses vinte e cinco anos que convivemos, essa é a segunda vez que colocamos a execução em pratica, em prol da confiança que nos une.”
Se toda norma é uma pratica moral daquilo que entendem por moralidade dentro de seus desígnios e cognição, a pena (dentro do grupo) não serve apenas para neutralizar o sujeito perigoso que frustrou as expectativas, mas sim, também para inibir crimes como esse, intimidando possíveis violadores da norma, servindo então para acanhar criminosos em potencial. Isso devido ao fato de que se escolhe qualquer um do grupo, seja jovem ou idoso, para manter a decisão e converter a sentença proferida em prática: a morte. Dessa feita, moralmente, o exemplo dado é que todos são cobradores dos atos de todos, e por esse prisma, todos são responsáveis pelos atos de todos no grupo. Não obstante, ao entender nossa sociedade e as leis que a culmina, imagina-se numa pena de morte onde todos poderiam servir aos propósitos de carrasco, quem de nós, de fato, puxaria o gatilho?
Segundo o senhor escolhiam o carrasco de uma forma utilitária. Os mais velhos faziam o serviço, pois segundo eles, teriam pouco tempo de vida para conviver com a imagem prestes a presenciar e mesmo com a culpa. O relator desse caso não conseguiu conviver com sua culpa de ter matado alguém de forma tão violenta e foi ter sua penitência, mesmo não fazendo parte integrante de fato da sociedade que o oprimiu pelo crime. Ainda sabendo que seu ato foi tido como normal perante seu agrupamento, sentiu-se péssimo e foi até a delegacia mais próxima relatar seu crime perante o grupo social do qual não possui nenhum sentido de pertencimento.
A história foi tão convincente que dois investigadores pediram que o senhor os levasse até o local do corpo. Chegando lá, em um canto ermo dos córregos entre dois viadutos, jazia o cadáver e, ao lado, a pedra que o atingiu. O velho não quis ir até onde estava o corpo. Foi pronunciado, agora apenas aguarda a data do júri.
O importante dessa trágica história, ou a lição que tiramos é inerente a como uma comunidade que confirma o seu status pela ajuda mútua, pelo escambo, pelas normas de proteção do próximo, numa pequena comunhão, pode ser realçada pelas normas morais que ela mesma estabelece como valorosas. Não importa o direito geral para esse grupo que se auto define e se estabelece ás bordas da sociedade em geral, o que lhes importa é a norma moral. A moralidade deles se baseia nos atos que não devem ser realizados contra qualquer um do grupo, pois não é o certo a se fazer, ou seja, a finalidade da pena é estabelecer as linhas morais rompidas de forma emblemática, colocando a responsabilidade em todos, uma vez que todos participam do julgamento e também, do golpe fatal.
Com certeza o crime foi julgado pelo Estado, todavia, inocentado por seu grupo, onde poderá retornar assim que cumprir a sua pena. Dessa forma, valores morais e novos dilemas são causados e enfrentados dentro dos grupos que se formam ainda pequenos, mas que com o passar dos tempos se estabelecem e fundam mais um elo na corrente da sociedade.