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Abolicionismo penal como um inimigo da Filosofia do Direito

Por Patrick Assunção Santiago. Para falarmos sobre a tese abolicionista, é imperioso retornarmos aos conceitos, afinal, não se discute seriamente um tema tão denso, sem fixar os conceitos; e não se discute os conceitos sem impor ao leitor um dever desagradável de uma taxonomia rigorosa. Contudo, essa imposição desagradável me livra da acusação que mais lamento: a de ser superficial.

Abolicionismo penal como um inimigo

O primeiro conceito a ser estabelecido é o conceito próprio do Direito Penal, que historicamente foi formado e entendido como um instrumento de controle social formal institucionalizado cujo conteúdo é composto por normas que definem algumas condutas consideradas intoleráveis em um Estado determinado, e para assegurar a eficácia de tais normas são estabelecidas sanções a serem aplicadas às pessoas que eventualmente as descumprirem.

O Direito Penal possui muitos conceitos pois possui muitas ideologias. A exemplo da ideologia liberal, que fundou o que se entende por Direito Penal moderno e a ideologia marxista, embora tenha sido elaborada no século XIX, se desenvolveu no século XX, sob uma infinidade de abordagens distintas entre si.

A concepção marxista possui importante relevo para o entendimento deste texto, justamente porque foi a partir dela que os teóricos que advogam a tese abolicionista fundamentaram seus argumentos.

Karl Marx, ao elaborar a tese marxista considera que o Direito (e o Direito Penal) seria uma das superestruturas da sociedade que definiram a cultura conforme paradigmas ideológicos determinados pelo sistema de produção e as suas respectivas relações econômicas. Disso segue que o Direito Penal seria uma espécie de instrumento mediante o qual uma parcela da sociedade controlaria a outra, que detinha o poder daquele contexto social.

A proposta marxista é revolucionária. O projeto sempre foi a modificação dessa superestrutura jurídica. Sobre isso explica Cirino dos Santos, ao dizer que ‘’as propostas revolucionárias que pretendem a eliminação do controle social burguês buscam a destruição dos aparelhos de poder estruturados por essa classe’’. Para a concepção marxista, o crime seria um produto das estruturas políticas capitalistas, porque se tais estruturas não definissem esses fatos, não haveriam crimes. Bem simples, não? não…

Explica Von Liszt que o ‘direito Penal é o conjunto das regras jurídicas estabelecidas pelo Estado, que associam o crime, como fato, à pena como legítima consequência.’. No mesmo sentido diz Mezger que ‘’Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício do poder punitivo do Estado, concatenado no delito como pressuposto e a pena como consequência.’’

Fato é que, assim como todas as normas naturais a um estado de direito, o sistema penal possui a sua legitimidade decorrente de uma norma que não é posta, mas sim pressuposta. Ou, em termos Kelsenianos, a Gründnorm.

Em matéria de ciência política moderna, o Estado de Direito é legitimado por uma Constituição que, a grosso modo, é um ente abstrato. A essência da Constituição inclui ser fundante de um Estado Constitucional. Uma constituição formalmente adequada (que garante os direitos fundamentais), necessariamente será aplicável a todo tipo de sociedade em que hajam entes racionais.

A constituição, em sua dimensão pura-prática, não é apenas um texto; na verdade, a constituição é, de certa maneira, universal. Existe apenas uma única constituição acessível à razão humana, no que tange o núcleo duro, que é instanciada de modos diferentes materialmente de acordo com as circunstâncias locais e históricas de uma determinada sociedade.

A Constituição é a estrutura jurídica basilar de um Estado. Ela será, sempre e em todo lugar, um ente abstrato, nunca concreto. Essa constituição que é universal existe na razão prática humana, cuja validade e legitimidade das demais instâncias concretas dependem necessariamente da sua adequação. Neste sentido, uma constituição será legítima e formalmente adequada em seu núcleo constitutivo de acordo com os parâmetros de legitimidade que são metafisicamente apodíticos.

Uma autoridade pública, em seu papel de fornecedor de uma condição civil, tem responsabilidades que convergem no critério de oferecer relações de direito, ou seja, promover um framework legal ubíquo em seu território, onde há igualdade formal e justiça distributiva. E é aqui, exatamente neste ponto em específico, que se fundamenta a teoria da pena.

O abolicionismo penal, nestes termos, parte de uma ingenuidade metodológica que se configura na errônea concepção de que por ser o sistema penal falho, este deve ser abolido (ou drasticamente modificado).

Tal concepção falha em cumprir com as exigências normativas da própria estrutura conceitual da norma: uma falha técnica não invalida uma premissa ética. Uma vez que tanto o Estado quanto a pena possuem legitimidade formal e material em relação a sua estrutura normativa, não estão sujeitos a implicações meramente empíricas. Explico melhor: a legitimidade de um conceito normativo é irredutível à própria eficácia.

A constituição brasileira, por exemplo, é legítima e formalmente adequada em seu núcleo constitutivo de acordo com os parâmetros de legitimidade que são metafisicamente apodíticos. Os vícios da Constituição Federal nada têm a ver com a sua essência enquanto Constituição. Da mesma forma que os vícios do Direito Penal, da Teoria da Pena e do sistema prisional não retiram sua legitimidade.

Vale lembrar que a eficácia é uma função da crença subjetiva das pessoas. A crença subjetiva das pessoas em nada afeta a legitimidade do Estado, do sistema penal ou da pena, do mesmo modo que se uma comunidade de pessoas acredita que somando 2 + 2, o resultado deve ser 5 não afeta a validade de que 2 + 2 é 4. Este exercício funciona para qualquer outro enunciado de uma ciência normativa. Acreditar no contrário é cair nas mais velhas e pueris falácias psicologistas, como é o caso do abolicionismo penal.

Por fim, sem prejuízo à sanidade, digo que o abolicionismo penal não passa de ideologia. É mera ingenuidade metodológica, estranha a qualquer que seja o conceito de justiça. O abolicionismo penal é, em última instância, irreconciliável com as noções de direito e de Estado tal como concebemos. Um erro conceitual de infinitas proporções.

Certo esteve o Gimbernat Ordeig quando disse que temos que conviver com o direito penal. Nós temos. Não podemos fugir disso.

Referências

LISTZ, Franz von. La idea de fin em Derecho Penal.

MEZGER, Edmund. Derecho Penal, Libro de Estudio.

ORDEIG, Gimbernat. Tiene un Futuro la Dogmática Juridicopenal?

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito

Eisele, Andreas. Direito Penal Teoria do Delito

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