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O abolicionismo é uma utopia?

O abolicionismo é uma utopia?

O objeto da criminologia esteve quase sempre centrado na figura do delito e na pessoa do dito criminoso, apenas no seu desenrolar enquanto disciplina, é que a criminologia acaba por abarcar a vítima e o controle social, também enquanto objetos.

Pode-se dizer que foi nos anos 1960 apenas, com a teoria do etiquetamento, que o controle social ganha maior centralidade enquanto objeto da criminologia.

A teoria do etiquetamento ou labelling approach, de acordo com Shecaira, surge nos anos 1960, sendo o verdadeiro marco da chamada teoria do conflito. Ela significa, segundo o autor, desde logo, um abandono do paradigma etiológico-determinista e a substituição de um modelo estático e monolítico de análise social por uma perspectiva dinâmica e contínua de corte democrático.

Ela contradiz a ideia de se analisar a sociedade como um todo pacífico, valendo-se, portanto, das relações conflitivas existentes dentro da sociedade e, que, na época, quanto mais porque surgiu nos EUA, estavam abafadas pelo sucesso do Estado de Bem-Estar Social. O pensamento criminológico deixa de referir-se ao crime e ao criminoso, passando a voltar-se para o exame do controle social e das suas consequências, bem como para o papel exercido pela vítima na relação delitual (SHECAIRA, 2013).

Nos anos 1960, muitos chamaram tais autores de críticos, pois essa nova perspectiva era de fato crítica ao direito penal e à criminologia tradicionais. Ocorre que, segundo Shecaira, nos anos 70 irá despontar outra teoria, a partir das obras de Taylor, Walton e Young, Criminologia nova e Criminologia radical, em que os autores fazem uma análise de cariz marxista e que passa a ser chamada de teoria radical ou crítica, por isso não seria correto se chamar a teoria do etiquetamento de crítica, mas, sim, de teoria da rotulação social ou etiquetagem, ou, teoria interacionista ou da reação social, ainda que tenha um cunho crítico também.

A teoria crítica, também denominada por alguns como radical, tem sua origem no livro Punição e Estrutura Social de Georg Rusche e Otto Kirchheimer, resultado do pensamento da então chamada Escola de Frankfurt. As suas ideias estavam à época assentadas numa visão marxista, sendo que os autores desnudam a história das penas com precisão, de acordo com Shecaira (2013), mostrando a relação existente entre os mecanismos de punição com a forma de produzir e vender mercadorias. A prisão é relacionada ao surgimento do capitalismo mercantil, pois a partir daí se passa da abolição do sacrifício do corpo dos criminosos para a disciplina da mão de obra com interesses econômicos.

A partir da referida obra, portanto, surgirão diversos grupos de críticos, tanto nos EUA, quanto na Inglaterra, Portugal, Itália, entre outros. Os dois principais livros, de acordo com Shecaira (2013), desencadeadores de todo o pensamento crítico foram concebidos por três autores ingleses: Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young. O primeiro – A nova criminologia – faz um grande balanço de todas as escolas sociológicas até o ano de 1973. O segundo trabalho, editado dois anos depois, e intitulado Criminologia crítica, traz uma série de ensaios que formam um todo coeso de acentuação crítica iniciada com o livro anterior.

Esses autores criticavam as posturas tradicionais da criminologia do consenso, pois estes seriam incapazes de compreender a totalidade do fenômeno criminal, ancorando o seu pensamento no marxismo, eis que sustentavam ser o delito um fenômeno dependente do modo de produção capitalista. A lei penal nada mais é do que uma estrutura dependente do sistema de produção. O Direito não é uma ciência, mas, sim, uma ideologia. O homem não tem livre-arbítrio, pois está submetido a um vetor econômico (SHECAIRA, 2013).

Num segundo momento, então, surgem três distintas tendências no interior da criminologia crítica, embora nem todos assim considerem, mas, de acordo com Shecaira (2013), estas seriam: o neorrealismo de esquerda, a teoria do direito penal mínimo e o pensamento abolicionista.  

Abolicionismo e pensamento abolicionista

E o pensamento abolicionista é quem faz uma crítica arrasadora ao sistema punitivo, de acordo com Shecaira (2013). Pois, de acordo com o referido autor, afirmam que o sistema penal só tem servido para legitimar e reproduzir as desigualdades sociais e injustiças sociais.

O direito penal, assim, é considerado uma instância seletiva e elitista, daí porque é necessário desmistificar o papel das instituições penais (Magistratura, Ministério Público, Polícia etc.).

Cabe referir, por outro lado, que existem vários abolicionismos. Sendo que de acordo com Shecaira (2013), essa corrente de pensamento se desenvolve a partir do etiquetamento e do pensamento originário de Taylor, Walton e Young.

Matrizes ideológicas do abolicionismo

Por isso, para Shecaira (2013), o abolicionismo possuiria três matrizes ideológicas: a anarquista (o sistema penal coloniza o homem e seu mundo vital, impedindo a sua felicidade, acreditam numa sociedade mais fraterna e solidária sem a presença do sistema penal), a marxista (o sistema penal é repressor e oculta os conflitos sociais) e a liberal/cristã (a qual se atém ao conceito de solidariedade orgânica, quando os homens se ocupariam dos seus próprios conflitos).

Para os abolicionistas, pode-se dizer, o delito é uma realidade construída, pois resulta de uma decisão humana. Sendo que é a lei que diz onde há crime e é ela que cria o criminoso. Dessa forma, de acordo com o pensamento abolicionista, seria fácil abolir o crime. Mas a pergunta que daí advém é: por que se faria isso? (SHECAIRA, 2013).

Segundo eles por que nós já vivemos em uma sociedade sem direito penal, pois a criminalidade efetiva, ou conhecida, é um evento raro, dada a cifra oculta; o nosso sistema é anômico, já que as suas normas não cumprem as funções esperadas, pois não protegem a vida, nem a propriedade, nem as relações sociais, uma vez que não conseguem evitar o cometimento de novos delitos, já que o efeito dissuasório da pena não está relacionado com o número de encarcerados.

Além disso, o nosso sistema é seletivo e estigmatizante, eis que cria e reforça desigualdades; o nosso sistema é burocrata e o fato de ele conceber o homem como um inimigo de guerra também é um problema desse sistema de repressão penal, o qual atua como um exército em estado de guerra; o homem é o objetivo a eliminar e muita vez é visto como um Estado inimigo, de acordo com Shecaira (2013); o sistema penal se opõe à estrutura geral da sociedade civil; a vítima não interessa ao sistema penal; o sistema penal é uma máquina para produzir dor inutilmente; e a pena, especialmente a de prisão, é ilegítima.

Uma vez que, de acordo com Elbert,

Os abolicionistas dizem que o interacionismo simbólico demonstrou que a prisão é reprodutora de criminalidade. Não obstante, a crítica abolicionista vai mais além da Criminologia, chegando a sustentar que os sistemas vigentes não são um progresso na crueldade dos castigos em relação à época anterior às reformas iluministas. Não é uma humanização – disseram – por que abarca conflitos que antes se resolviam de outro modo, e permite, além do mais, castigar mais gente. Por isso, consideram que a prisão é apenas uma alternativa à tortura e à pena de morte.

Ora, se trazemos o pensamento abolicionista para a realidade vigente, vamos verificar a convergência desse pensamento com a realidade vivenciada e descobriremos que suas ideias não são nem um pouco infundadas ou descabidas, mas são, sim, rotuladas e etiquetadas por muitos os quais talvez desconheçam a sua história e real significado.

Abolicionismo e utopia

Por isso, mais uma vez se valendo das palavras de Eduardo Galeano, se a utopia nos é necessária para caminhar, considero que no momento atual, em tempos de hiperencarceramento e de políticas eliminatórias do ‘outro’, o abolicionismo, seu pensamento e suas matrizes históricas, são mais do que necessários à reflexão, eu diria, são imprescindíveis.


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Mariana Cappellari

Mestre em Ciências Criminais. Professora. Defensora Pública.

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