Abolicionismos e Sociedades de Controle
Abolicionismos e Sociedades de Controle
O texto abaixo é o posfácio de Attila Piovesan da obra “Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos” (2018) de Guilherme Moreira Pires.
Abolicionismos e Sociedades de Controle (Pósfácio)
A partir do momento que se chega ao fim da leitura deste conjunto de ensaios, o leitor tem a sensação de ter lido algo incomum, porém essencial.
A intenção de Guilherme Moreira Pires, exposta desde a nota inicial é uma: a destruição das falsas legitimações que usamos para criar, propagar e defender a cultura repressiva, uma mentalidade que não existe somente em um ambiente institucional jurídico ou estatal – pelo contrário, é constantemente alimentada pelas próprias estruturas sociais que coordenam um caleidoscópio punitivo presente em todas as instâncias de nossas vidas independente de classe social, escolaridade, situação econômica e sistema político; é algo que contamina nossas próprias subjetividades, refletindo um fenômeno palpável para muito além dos corredores frios e brutais do universo carcerário e suas celas quentes e infectas.
O inusitado se dá não tanto em nível de conteúdo, mesmo considerando o estranhamento da militância anarquista em alguém com formação e atuação jurídica. O que chama a atenção é o estilo. É um texto que exige leituras e releituras, nos convocando incessantemente à reflexão. Guilherme escreve de forma furiosa.
Não há espaço aqui para análises ou formalizações discursivas que repetem os padrões das linguagens repressivas – deixe-as para a torre de marfim da academia ou para o reformismo etapista e essencialmente conservador da “criminologia crítica” denunciados nos ensaios aqui reunidos.
Os textos deste volume são estilisticamente pedagógicos: a redundância de termos (Estado, autoridade, gosmificado, condutores de consciência, abolicionismo, anarquismo, linhas de fuga, controle, resistência, dentre outros) é constante, um recurso comum na retórica argumentativa para manter a ligação interfrasal sem deixar o leitor se perder, mas a cadência em que eles ocorrem não é meramente persuasiva.
É a cadência da dor e do desespero, testemunho de como um mundo de infinitas potencialidades é destroçado em micro (e macro) repressões cotidianas. É um chamado, um canto de convocação, uma sequência anarquista de palavras de ordem.
Muitos podem imaginar a ordem como algo alheio ao pensamento anárquico, mas nada mais enganoso. Uma das frases mais famosas de Proudhon é “A sociedade procura a ordem na anarquia”, mas Guilherme desconfia de slogans reconfortantes, que evitam escandalizar sensibilidades petrificadas, inclusiva as de verniz revolucionário: “’Anarquia é ordem’ nos remete, na atualidade, a um desses trocentos exemplos de slogans esvaziados, que dilaceram a complexidade dos anarquismos e da vida ao se propor a codificar o abrangente potencial dos ventos libertários como pedra uniforme da ordem como senha”.
A conclusão é inequívoca. Anarquia se trata de uma dança entre ordem e desordem, e reconhecer isto, chamando o parceiro para uma valsa desvairada é parte crucial do processo de anulação dos discursos repressivos – e isto esta obra nos convida a fazer, tanto em forma quanto conteúdo.
Pierre-Joseph Proudhon, William Godwin e Max Stirner, são os três autores angulares e primordiais da teoria anarquista que permeiam o texto de Guilherme, além de, em menor grau e menos associados ao anarquismo, Étienne de La Boétie e Gilles Deleuze. O “pai da anarquia” (Proudhon) a definiu sucintamente como “ausência de mestre, de soberano”.
Todavia o pensamento anarquista sofreu tantas variações e desenvolvimentos que extrair um denominador comum passou a ser problemático, ainda mais diante dos inúmeros erros e interpretações que pululam quando o tema é a anarquia. Muitos reduzem anarquismo a mero “antiestatismo”.
Certamente a ideia de eliminação do Estado é um traço relevante, mas não é o elemento central do pensamento anarquista, pois como Guilherme aponta, o Estado é apenas uma das manifestações de um fenômeno ainda mais amplo – e este sim consiste no grande alvo da crítica anarquista: a autoridade.
Por isto que muitos enxergam na anarquia um movimento “antiautoritário”, e certamente o conjunto de textos de Guilherme são libelos contra a autoridade e o autoritarismo, principalmente nas instâncias em que se impõem como discursos aparentemente progressistas e bem-intencionados, transfiguração vista na própria ideia moderna de prisão.
A existência das prisões é bastante antiga, mas a forma como as usamos atualmente é historicamente recente. Outrora, prisão não era a pena em si, mas sim um expediente utilizado quando, por algum motivo, a pessoa precisava ser confinada até a execução da punição (geralmente morte, desterro, galés ou alguma forma de compensação que podia ser desde o pagamento em dinheiro ou na forma de trabalho escravo).
É óbvio que as condições dos prisioneiros eram penosas – os últimos meses de vida do filósofo romano Boécio bem o demonstram. Tortura e degradação de prisioneiros são praticamente tão velhos quanto as civilizações humanas, mas o aprisionamento enquanto pena única não era comum até o raiar da modernidade.
Por volta do século XVII inicia-se na Europa um processo de racionalização da política, economia e dos direitos civis, culminando na alçada da noção de liberdade a um patamar inédito na história ocidental. Liberdade passa a ser algo independente da classe social ou da condição financeira.
Surge o moderno Estado de Direito, no qual a lei impera mais do que o soberano, e a ela todos devem se submeter. Enquanto esta submissão ocorre, todos gozam de plenos direitos juridicamente garantidos, incluindo a liberdade. A violação do contrato social na forma de ato criminoso significaria abdicar desses direitos.
O sistema jurídico moderno “humanizou” as punições – proporcionando bases para que, aos poucos, pena de morte (muitas vezes precedida de torturas horripilantes em praça pública), exílio e servidão escrava fossem substituídas por restrição da liberdade.
O processo que coloca a liberdade como bem supremo foi o mesmo que fez de sua perda a punição máxima. Criou-se uma escala de valores pela conversão de tipos de delitos em tempo de perda da liberdade.
Aos olhos dos anarquistas (do século XIX!) parecia óbvio que esta nova configuração legitimaria de forma institucional a criação de antecâmaras do inferno: barbáries indizíveis ocorrem constantemente dentro dos muros das prisões. Diante disto, pode-se fazer a pergunta essencial: equacionar ato ilícito ao tempo de restrição de liberdade resolve o problema social, evita violência e inibe criminalidade, ainda mais nas condições penais que se praticam atualmente, principalmente no Brasil?
Esta é uma questão fundamental que o texto de Guilherme nos faz encarar, e, sendo ele um anarquista, é respondida com sonora negativa. Enquanto um Estado violento e uma sociedade brutal persistirem, a prisão nada resolverá.
O presídio continuará em uma espiral descendente infinita aquilo que existe do lado de fora. Brutalizamos o Estado para que ele faça aquilo que desejamos enquanto permanecemos com as mãos limpas, pois no fundo achamos que apenas relacionar tempo com perda de liberdade não é punição suficiente. A barbárie com que os prisioneiros matam a si mesmos, e com a qual nós, os livres no tempo e no espaço, os matamos, é a nossa própria barbárie.
Não é apenas contra as masmorras modernas que Guilherme se insurge. Ele denuncia vigorosamente a própria estrutura sutil do processo de capturas de consciência, impulsionado a novos e assombrosos patamares com a emergência da chamada “sociedade de controle”, uma estrutura de poder rizomática, hi-tech, algorítmica, que avança para todos os aspectos de nossas vidas, realizando de forma plena e efetiva uma biopolítica moldada pela sociedade de mercado e consumo – gerando um processo constante de inclusão que foraclui a verdadeira potência da alteridade e por vezes institui autoritarismos (travestidos em termos positivos da moda como “liberação” e “empoderamento”).
Assim posto, uma pergunta persiste: o que os anarquistas entendem por autoridade? Em Anarchism and authority: a philosophical introduction to classical anarchism, Paul McLaughlin, de forma um pouco controversa, mas plausível, defende que a anarquia não renega, a priori, a autoridade.
Certamente há anarquistas que se insurgem de antemão contra qualquer tipo de autoridade, mas o autor entende que tais posicionamentos individuais não refletem a mentalidade anarquista no geral. Para ele, a anarquia seria caracterizada pelo ceticismo em relação à autoridade, ou seja, o anarquista reflete critica e racionalmente sobre os discursos que legitimam a autoridade, concluindo a posteriori sobre a ausência de fundamento moral que justifique a autoridade em instâncias sociais, políticas, econômicas, familiares ou pedagógicas.
Para McLaughilin, o “procedimento filosófico básico do anarquismo é questionar ou levantar dúvida sobre os fundamentos de qualquer autoridade e desafiar as formas de autoridade que julgam ilegítimas”.
É um ceticismo de natureza ética e sociopolítica. Sendo assim, deve considerar a possibilidade de existir relações legítimas de autoridade, e não enunciar peremptoriamente a impossibilidade de tais relações, mesmo que nenhuma eventualmente passe pelo crivo cético do anarquista.
As considerações dos parágrafos anteriores são relevantes, pois uma das principais críticas de Guilherme é contra a “educação para a obediência”, e talvez seja justamente neste ponto que seu texto revela toda a potência libertária de seu pensamento para além do mero abolicionismo penal, pois atinge o âmago da fabricação de mentalidades repressivas existente nos processos pedagógicos. Seu inimigo é milenar: o platonismo e sua explicação para a origem da virtude nas sociedades humanas.
A partir de Platão, como se vê, por exemplo, no diálogo Protágoras, fundamenta-se na teoria política a ideia de que uma sociedade somente pode existir por causa der um processo jurídico e discricionário de exclusão de elementos indesejados por meio da violência; a de que valores repressivos devem ser inculcados desde a mais tenra idade em nome do “bem da comunidade”; a punição como instrumento político-pedagógico baseado no medo (aliás, medo é um sentimento essencial para o rei-filósofo platônico controlar as massas, prometendo punições terríveis até mesmo após a morte e antecipando em séculos o cristianismo neste aspecto).
De qualquer maneira, a ideia de autoridade permeia todo este processo, e não seria um erro chamar Platão de o primeiro legitimador do autoritarismo.
Os diálogos platônicos têm uma inegável virtude, a saber, a de mostrar de forma simples e sucinta todos os motivos que justificam a existência não apenas do abolicionismo penal, mas até de um de seus desdobramentos mais recentes, o “abolicionismo da cultura repressiva” – que, como Guilherme nos mostra, é uma reconfiguração discursiva necessária para escapar das capturas dos discursos simplificadores de autoridades jurídicas enquanto remete a manifestações autoritárias mais amplas presentificadas em vários níveis das sociedades contemporâneas.
No ensaio “O que é autoridade?” Hannah Arendt dissocia autoridade de poder e acusa um declínio da autoridade na modernidade, um processo que teria atingido o ápice no século XX. Um anarquista nunca pensaria que autoridade deixou de existir ou que esteja em situação de crise; todos os textos de Guilherme demonstram, ao contrário, como ela se impregna até nas coisas mais comezinhas por meio de um bombardeio discursivo que reitera certas ideias capazes de anular as potências renovadoras das mentes infantis em nome do conforto hierárquico e burocrático da mentalidade repressiva.
Ainda que concordássemos com Arendt sobre a separação entre autoridade e poder, a autoridade não deixa de ser uma forma de governo – como a Igreja Católica já sabia desde a antiguidade ao não se ater ao mero poder temporal. Por isto Guilherme escreve o seguinte:
As crianças são administradas (é dizer, governadas) por autoridades que lhes adestram e vigiam seus passos, celebrando a verticalidade; assim, muito pouco se aprende, e ademais, rapidamente se esquece o pouco aprendido: o que vale e importa passa a ser acessar tais aprendizados no momento da prova e seu respectivo sistema de notas, um acesso limitado, forjado para jogar o jogo dos castigos e recompensas, e depois evaporar e se perder, desaparecer.
McLaughlin defende que há situações nas quais a autoridade pode ser legitimada até mesmo para um anarquista, como na relação entre pais e filhos, entre professor e aluno ou especialista e leigo – o que não significa que tais condições não possam vir a ser criticadas: a relação parental-filial repressiva e abusiva, educação que abdica do pensamento crítico e das potencialidades dos estudantes e discursos técnicos-científicos que na verdade desejam manter hierarquias e privilégios são frequentemente denunciado por anarquistas, e Guilherme, reprova com veemência todos esses tipos de ilegitimidade autoritária.
Tais contestações transcendem a dicotomia política entre esquerda e direita, visto que em termos de mentalidade repressiva, ambas são extremamente semelhantes, levando Guilherme a distinguir (e este é meu único ponto de discordância com ele) a anarquia da esquerda.
Os critérios fundamentais para o ceticismo anárquico desafiar as legitimações das relações de autoridade são quando tais relações se baseiam em dominação e exploração. O que diferencia a anarquia do liberalismo e do socialismo não é porque nas outras vertentes se desconheça os problemas do autoritarismo, da exploração e dominação, e sim porque nenhum dos pressupostos que possam a vir legitimar tais coisas aos olhos liberais e socialistas são moralmente aceitos pelos anarquistas.
Justamente por esta postura cética do pensamento anárquico sem equivalente em nenhuma das demais posições políticas é que a anarquia se torna instrumento privilegiado para a causa do abolicionismo das culturas repressivas, como Guilherme frisa constantemente, e sob este aspecto sua tese é ousada: afinal, o movimento abolicionista tem outras vertentes além da anarquista, mas Guilherme defende que não é possível abolicionismo se não for pela via da anarquia, pois qualquer outra opção leva ao caminho da servidão, e as referências constantes dele a La Boétie servem de advertência para não cairmos nesta armadilha.
Aliás, a questão da “servidão voluntária” denunciada por La Boétie nos remete a outro discurso de dominação política e social para além do platonismo, um posicionamento filosófico sobre a fundação da sociedade que clama desconfiança e medo como essências da natureza humana e sintetizado na máxima “o homem é o lobo do homem” de Thomas Hobbes.
Para Hobbes, se deixado no estado de natureza, cada um faz qualquer coisa para satisfazer suas vontades: a única relação possível entre seres humanos é a da força e dominação. O estado de natureza é um estado de paranoia, desconfiança, brutalidade e medo. Isto se relaciona diretamente a um dos ensaios que dizem respeito a um drama recente vivido por grande parte dos habitantes do Espírito Santo: a greve policial ocorrida no início de 2017.
Sua gênese, desdobramento e conclusão – somados ao impacto do evento principalmente nas regiões capixabas periféricas – deve muito ao fato de que no Brasil acreditamos na tese do estado de natureza. Pensamos que o humano é essencialmente cruel, mesquinho e autoritário. E justamente por crermos nisto que sempre vamos, enquanto sociedade, perder.
Abolicionismos e Sociedades de Controle
Como bom anarquista, Guilherme rejeita esta tese, e atacando-a, quer nos fazer ver como a mentalidade que conclama a presença de militares nas ruas, que reforça a necessidade da existência da Polícia Militar (ainda mais nos moldes atuais) e do encarceramento massivo nunca resolverá a situação da segurança pública.
Acreditar que andar armado, ter na rua tanques, soldados com fuzis, policiamento brutal e exigir em um gozo repressivo a construção de mais prisões não reduz a violência, apenas desloca-a; na verdade, ter este tipo de mentalidade garante a continuidade do problema.
A teoria política moderna afirma hobbesianamente que o propósito supremo do governo é a garantia da segurança e que esta é pré-requisito necessário para o exercício da liberdade – mas em contrapartida define liberdade como tudo aquilo que existe fora do âmbito político, ou seja, cindindo ambos ao riscar uma linha intransponível que confunde a distinção entre público e privado com a diferença entre autoridade e liberdade.
Guilherme deseja reverter o diagnóstico de La Boétie de que abrimos mão da liberdade em nome da segurança ao preço de solidificar a cultura repressiva. De certa forma, o objetivo de sua obra é anular o divórcio imposto entre liberdade e política, pois qualquer emancipação, seja em nível individual ou coletivo, só é possível quando a mentalidade libertária recuperar o terreno perdido na política ao nos resgatar dos “condutores de consciência” autoritários, sejam eles públicos ou privados.
E temos sorte por existir aqueles que lutem por isto, como Guilherme e os demais abolicionistas (cujas presenças se fazem sentir em todos os ensaios). Contudo, eles só atingirão o objetivo se a importante mensagem que esta obra traz puder ser espalhada, compartilhada, compreendida e discutida, e rogo para isto acontecer.
Saúde!
REFERÊNCIAS
PIOVESAN, Attila. O abolicionismo anarquista de Guilherme Moreira Pires (posfácio). In: PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Sociedades de Controle: entre aprisionamentos e monitoramentos. Florianópolis: Habitus, 2018. (aqui)
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