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O que se entende por acareação no processo penal?

A acareação – mecanismo jurídico processual pelo qual duas ou mais pessoas são colocadas frente a frente para esclarecerem divergências relevantes em suas declarações – talvez seja o meio de prova de efetividade mais questionada em âmbito jurídico. Muito disso se deva, talvez, a uma crença de que duas (ou mais) pessoas que prestaram declarações – em sede de investigação preliminar ou no curso do processo – tenham sempre a tendência a simplesmente manter suas versões pretéritas.

Efetivamente, em casos penais de menor complexidade – que envolvem, por exemplo, a imputação de um único fato -, é provável que essa tendência se confirme. Contudo, em casos penais de maior complexidade – nos quais existem vários acusados ou imputações de vários delitos – a acareação pode ser um meio de prova bastante útil, notadamente para sanar lapsos, contradições e incongruências decorrentes dos diversos detalhes fáticos a serem debatidos por força da instrução.

Um possível indicativo da importância da acareação como meio de prova consiste na análise do direito comparado. Com efeito, o instituto está positivado nos Códigos de Processo Penal de Portugal (art. 146), da Itália (arts. 211 e 212), da Argentina (arts. 276 a 278), do Paraguai (arts. 95 e 233) e na Ley de Enjuiciamiento Criminal Espanhola (arts. 451 a 455), apenas para ficar em alguns poucos exemplos. No Brasil, o instituto vem positivado nas regras dos arts. 230 e 231, do CPP e nos arts. 365 a 367, do CPP Militar.

Este meio de prova não está apenas a serviço da instrução processual penal, admitindo-se a possibilidade de acareações no processo civil (art. 461, II e §§ 1º e 2º, do CPC) e inclusive em processos administrativos (v.g. art. 159, parágrafo 1º, da Lei 8.112/90).

No âmbito da persecução penal e da fase de realização da diligência, a regra do art. 230, do CPP, prevê a admissibilidade da acareação tanto no curso do processo como em sede de inquérito policial. Tem-se admitido, também, a realização de acareações em Comissões Parlamentares de Inquérito.

Relativamente aos sujeitos processuais, a admissão do meio de prova é bastante ampla: pela atual redação da regra do art. 230, do CPP, podem participar de acareações coacusados, acusado e testemunha (ou informante), testemunhas, vítima e acusado, vítima e testemunha ou ainda a acareação pode ocorrer entre vítimas.

Em sede doutrinária, muito se discute sobre a eficácia da acareação na qual ao menos um dos acareados seja investigado ou acusado, tendo-se em vista o direito fundamental ao silêncio – e mesmo a possibilidade de não participação do ato processual -, que também se aplica a este ato da persecução (art. 8.2, g, da CADH e art. 5º, LXIII, da CR/88). Igualmente, a acareação envolvendo um informante é extremamente discutível, precipuamente por se tratar de indivíduo que não presta o compromisso legal de dizer a verdade (art. 203, do CPP).

Ainda assim, não se pode descartar ex ante a possibilidade de que, uma vez deferida a realização da diligência, o investigado/acusado dela participe e esclareça a divergência, ou ainda que o informante preste declarações e modifique algum ponto de sua versão anterior.

O objetivo principal desse meio de prova consiste em buscar esclarecer divergência ou antagonismo existente entre duas ou mais versões produzidas no curso da persecução penal. Portanto, inexistindo antagonismo entre versões, descabida é a realização do meio de prova. Ademais, não é qualquer antagonismo de versões que permite a realização da diligência, sob pena de banalização indevida do instituto[1].

Nesse contexto, deve-se demonstrar que o ponto divergente objeto da acareação é relevante para o acertamento do caso penal, de modo que “se a discordância (…) não versar sobre fatos ou circunstâncias relevantes, não deverá haver acareação.” (TOURINHO FILHO, 2011, p. 384-385).

Além da demonstração da relevância da divergência a ser esclarecida, a doutrina apresenta outros dois pressupostos para a realização do meio de prova: (a) a acareação deve versar sobre declarações anteriormente prestadas e; (b) deve-se demonstrar a indispensabilidade do meio de prova, ou seja, a inexistência de outros elementos capazes de sanar a divergência.

No que se refere ao primeiro pressuposto, parece evidente que para haver divergência sob ponto relevante de depoimentos, é necessário que estes tenham sido prestados. Caso contrário, não há como cotejar versões para deduzir se são consonantes ou dissonantes. Sendo assim, a realização de acareação sem que existam declarações anteriormente prestadas ou mesmo sem que exista divergência relevante a ser esclarecida engendra ilegitimidade probatória, tendo-se em vista o não preenchimento do requisito legal para a formação do ato processual[2].

Relativamente à indispensabilidade do meio de prova, em que pese respeitável doutrina defendê-la como pressuposto à acareação, essa posição parece criticável. Isso porque as regras a respeito da acareação não contemplam de forma expressa esse pressuposto como indispensável à medida – como ocorre, exemplificativamente, em relação à interceptação telefônica (art. 2º, II, da Lei 9.296/96) -, de modo que acrescentar óbices não previstos em lei para a realização da diligência implicaria em indevida restrição ao direito à prova.

Ademais, como todos os meios de prova possuem valor relativo, não há garantias de que a prova previamente existente nos autos – e que em tese resolveria a divergência a ser sanada pela acareação – vincule a formação do convencimento judicial.

A importância prática em se determinar quais são os pressupostos para a realização da acareação reside no fato de que, uma vez demonstrada pela parte o preenchimento dos pressupostos, não há razão para o indeferimento da diligência, em que pese posição jurisprudencial no sentido de que o juiz pode indeferir a diligência – mesmo havendo sérias divergências entre as versões -, desde que o faça fundamentadamente.

Por fim, outros dois pontos importantes.

Não há previsão expressa a respeito do momento processual no qual a diligência deve ser requerida, sendo que o STF entende que “o momento oportuno para acareação se dá depois da colheita de toda a prova oral” (STF – AP 470 QO-quinta, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 3.9.2010). Na prática – e para evitar discussões desnecessárias a respeito da preclusão – o melhor seria requerer a realização da acareação tão logo surja nos autos a divergência a ser sanada, ainda que isso ocorra antes da colheita de toda a prova oral ou mesmo antes da fase de diligências complementares.

E quando diligência pretenda resolver divergência relevante existente entre o depoimento de dois acusados ou investigados, não é recomendável que um mesmo advogado patrocine os interesses de ambos os coacusados acareados, para evitar conflito de interesses e nulidade do ato por cerceamento de defesa[3].


NOTAS

[1] Nesse contexto, Eduardo ESPÍNOLA FILHO (1945, p. 114) assevera que “não é aconselhável, nem mesmo justificável que a autoridade submeta as pessoas, que inquiriu, a acareações, tôda vez que verificou haver divergências entre os seus dizeres. Se assim procedesse, perderia tempo precioso, para obter uma harmonia absoluta, que, além de insignificativa, seria meramente artificial.”

[2] Ainda assim, o e. STF possui precedente no qual reconhece a licitude de acareação realizada em sede de inquérito policial, antes mesmo do interrogatório de um dos acareados, ou seja, sem que tenha existido, naquele momento da persecução penal, versões antagônicas a serem objeto da acareação: “A acareação feita no inquérito policial, reputada ilegal por não ter havido o prévio interrogatório de um dos acareados, não macula a ação penal, por ser peça meramente informativa.” (STF – RHC 81.065, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 28.9.2001)

[3] Em sentido diverso: “Em que pese na acareação ter a mesma defensora patrocinado réus com interesses divergentes, do ato não resultou qualquer prejuízo ao Paciente, já que não foram trazidos fatos novos ao processo, porque os acusados mantiveram as declarações pretéritas.” (STJ – HC 79.533, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 13.10.2008)


REFERÊNCIAS

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro. v. III. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1945.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. 3. 33. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

Bruno Milanez

Doutor e Mestre em Direito Processual Penal. Professor. Advogado.

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