Aplicabilidade da Teoria da actio libera in causa
Aplicabilidade da Teoria da actio libera in causa
I – Introdução
O constante progresso dogmático da Teoria Geral do Delito se deve, em suma, à incessante busca por um conceito universal de conduta punível. Desde o Direito Penal Romano, com as leges Corneliae e Juliae (80 a.C.), que tipificavam comportamentos que deveriam ser tidos como criminosos, até o Direito Penal contemporâneo – não mais alheio a questões de política criminal -, vê-se uma luta atemporal pela conceituação exata do vezo merecedor de pena.
Historicamente, sob a influência do Direito Germânico, vigeu, durante quase um milênio, o sistema da responsabilização objetiva do agente, isto é, a penalização em virtude da mera causação de um resultado tipificado como crime, abstraindo-se do conceito de conduta punível a vontade do agente.
Sobre isso, como bem pontua Bitencourt, tal paradigma somente deixou de ser utilizado após a influência do Direito Romano, cujo sistema de responsabilização penal exigia vínculo psicológico.
Essa superação do sistema penal da responsabilização objetiva, quando trazida para efeitos do ordenamento jurídico-penal pátrio, é meramente aparente, segundo sustenta parcela da doutrina.
Segundo esses últimos, subsistem em nosso Código Penal resquícios do aludido sistema, exemplo disso seria o tratamento dado pelo Códex àquele que comete um delito embriagado, entendendo-se como embriaguez “a intoxicação aguda e transitória causada pelo álcool ou substância de efeitos análogos, cujos efeitos podem progredir de uma ligeira excitação inicial até o estado de paralisia e coma”
É dizer, da leitura do art. 28, inciso II, §§ 1º e 2º, do Código Penal, depreende-se que nos casos de injustos penais cometidos em estado de embriaguez culposa ou voluntária (excluída a acidental), não será levada em conta a eventual perda – total ou parcial – da consciência do agente, ante a aplicação plena da teoria da actio libera in causa.
Em outras palavras, segundo dispõe o Código, considerar-se-á injusto punível a conduta típica praticada por pessoa embriagada, mesmo que inteiramente incapaz de compreender a natureza ilícita do fato, ou de determinar-se segundo tal entendimento, desde que tal ebriedade não decorra de caso fortuito ou força maior.
Assim, afirmar que o legislador perfilhou a aplicabilidade plena da teoria da actio libera in causa implica não só a ocorrência de responsabilização objetiva mas também a negação do conceito analítico do crime, conforme fundamentos a seguir aduzidos. Indaga-se, contudo, se tal negação é opção de política criminal – eis que viabiliza que o embriagado incorra nas sanções dos crimes dolosos – ou mera exteriorização da deficiência teórica do legislador.
II – Actio libera in causa e conceito analítico de crime
O agente embriagado, a depender da intensidade dos efeitos da substância ingerida, pode ter sua capacidade intelectual afetada em vários graus. A utilização de substâncias químicas alucinógenas, estimulantes, analgésicas, hipnóticas ou até depressoras promove alteração na sensopercepção do agente, podendo meramente subtrair-lhe seus freios inibitórios, causar-lhe hiperexcitação ou até causar eventual exclusão total de sua consciência (fase comatosa).
Nessa razão, quando do cometimento de um injusto penal por agente embriagado, resta forçosa a conclusão de que tal conduta não é livre “no ato”, visto que a vontade do agente encontra-se excluída ou, ao menos, viciada.
Nesses casos, em que pese não haver liberdade no ato, o injusto é, por ficção jurídica, livre na causa (actio libera in causa), pois o estado de embriaguez decorreu da própria vontade do agente, ou, em termos simplórios, o agente “bebeu porque quis”. Assim, segundo essa teoria, “o dolo e a culpa do injusto devem ser deslocados para a vontade do sujeito, presente no momento em que ele se colocou no estado de incapacidade de culpabilidade”.
A proposta da teoria da actio libera in causa é de que devem ser analisados o dolo e a culpa ao momento da ingestão da substância química e não ao momento da realização da conduta típica. Assim, o agente que ingere bebida alcoólica com o intuito de embriagar-se, se vier a cometer um delito ainda sob o efeito do álcool, o dolo a ser aferido será aquele existente no momento em que teve início a ingestão.
Com efeito, convencido o julgador de que o estado de embriaguez foi livre na causa, isto é, que o agente não foi forçado a beber, torna-se possível a condenação por crime doloso.
Vencida essa primeira etapa, compete-nos alocar o estado físico da embriaguez dentro da estrutura do conceito analítico de crime.
O conceito de crime comporta, em suma, três critérios: material, legal e analítico. Acerca deste último, parcela majoritária da doutrina converge em entender que crime seria o fato típico, ilícito e culpável. É importantíssimo, neste ponto, lembrar que através da adoção da teoria finalista da ação, dolo e culpa integram o fato típico e não mais a culpabilidade.
Ademais, sob o panorama do sistema da responsabilização subjetiva, a comprovação do elemento subjetivo – isto é, da existência cumulada dos elementos cognitivo e volitivo nos crimes dolosos e da possibilidade do agente prever o resultado ilícito nos crimes culposos -, é pressuposto para a aferição da tipicidade e eventual penalização do agente.
Nessa razão, a depender do caso concreto, não poderia o agente embriagado atender aos requisitos retro, isto é, sua vontade, consciência, bem como capacidade de representar no subconsciente um resultado ilícito restariam prejudicadas.
Todavia, em que pese o estado físico da embriaguez possa resultar na exclusão total da vontade do agente, preferiu o legislador alocar a embriaguez no âmbito da culpabilidade, atrelando-a ao conceito de imputabilidade penal (art. 28, inciso II, do Código Penal), e não no âmbito do fato típico.
Diante de todo o exposto, é possível afirmar que a conduta de embriagar-se é atípica, assim como a conduta de embriagar-se com o propósito de cometer um injusto também o é, visto que, sob a perspectiva da teoria objetivo-formal, tais ações configuram meros atos preparatórios. No entanto, sob a perspectiva da teoria da actio libera in causa, essas mesmas condutas seriam dotadas de culpabilidade, conquanto atípicas.
Percebe-se, portanto, que a aplicabilidade plena da aludida teoria implica a fragmentação dos elementos que compõem o conceito analítico de crime. Ilustra-se: o agente inicia a ingestão de bebida alcoólica com o estrito propósito de embriagar-se; após algum tempo, atingida a embriaguez completa, estando inteiramente incapaz de compreender a natureza ilícita de suas condutas, ou de determinar-se segundo tal entendimento, saca sua arma e dispara contra um rival, matando-o.
In casu, sob a perspectiva da teoria ora estudada, ao momento da conduta, isto é, quando do acionamento do gatilho da arma, houve fato típico (vez que o dolo aqui aferido é aquele existente ao momento da ingestão da bebida).
A culpabilidade, de seu turno, não existe ao momento do acionamento do gatilho, mas sim quando da ingestão da bebida. Ou seja, o fato típico ocorre ao momento do acionamento do gatilho e a culpabilidade ao momento da ingestão da bebida.
Malgrado a proposta supramencionada, a dogmática penal exige, em tese, que para a ocorrência de um crime, a tipicidade, a ilicitude bem como a culpabilidade devem ocorrer de maneira simultânea e não em momentos diversos.
Por exemplo, o adolescente de 17 anos que subtrai para si coisa alheia móvel comete fato típico e ilícito, mas não culpável, ante sua inimputabilidade, razão pela qual tal ato não pode, em hipótese alguma, configurar crime, mas sim ato infracional análogo ao crime de furto. Neste sentido, “Ou o agente comete o delito (fato típico, ilícito e culpável), ou o fato por ele praticado será considerado um indiferente penal”.
Com efeito, considerando que a teoria da actio libera in causa torna possível ocorrência de um crime sem a existência simultânea dos três elementos que compõem o conceito analítico de crime, indaga-se: estamos diante de opção de política criminal ou mera deficiência teórica do legislador?
Há uma única maneira de responder esse questionamento: consultando os responsáveis pelo anteprojeto do Código Penal, bem como sua exposição de motivos, conforme título a seguir.
III – Tratamento dispensado pela Exposição de Motivos do Código Penal de 1940:
A exposição de motivos do Código Penal de 1940, publicada em 04 de novembro de 1940, pelo então Ministro Francisco Campos, previa que:
Ao resolver o problema da embriaguez (pelo álcool ou substância de efeitos análogos), do ponto de vista da responsabilidade penal, o projeto aceitou em toda a sua plenitude a teoria da actio libera in causa ad libertatem, que, modernamente, não se limita ao estado de inconsciência preordenado, mas se estende a todos os casos em que o agente se deixou arrastar ao estado de inconsciência.
Quando voluntária ou culposa, a embriaguez, ainda que plena, não isenta de responsabilidade (art. 24, nº II): o agente responderá pelo crime. Se foi preordenada, responderá o agente, a título de dolo, com a pena agravada (art. 24, nº II, combinado com o art. 44, nº II, letra “e”).
Somente a embriaguez plena e acidental (devida ao caso fortuito ou força maior) autoriza a isenção de pena, e, ainda assim, se o agente, no momento do crime, em razão dela estava inteiramente privado da capacidade de entendimento ou de livre determinação.
Observa-se que a Exposição de Motivos do Código de 1940 já era inequívoca no sentido de ser possível a aplicabilidade da teoria do actio libera in causa, não somente nos casos de embriaguez preordenada, mas sim em sua plenitude, excetuados os casos de embriaguez total e acidental.
Com a entrada em vigor da Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984 (hodiernamente denominada “reforma do Código Penal”, cuja autoria de seu anteprojeto incumbiu ao saudoso professor Nélson Hungria), redigiu-se nova Exposição de Motivos, publicada no Diário do Congresso (Seção II), em 29 de março de 1984. Nessa, contrariamente aos anseios majoritários da doutrina penalista atual, não houve rejeição à aplicabilidade da teoria da actio libera in causa, nestes termos:
Permanecem íntegros, tal como redigidos no Código vigente, os preceitos sobre paixão, emoção e embriaguez. As correções terminológicas introduzidas não lhes alteraram o sentido e o alcance e se destinam a conjugá-los com disposições outras, do novo texto. (negrito nosso)
A remissão feita no excerto supramencionado corrobora com a tese arguida por parcela da doutrina de que a mens legis é inequívoca no sentido de admitir a aplicação da aludida teoria.
Todavia, tal ensaio não prescinde da análise da natureza jurídica da Exposição de Motivos do Código Penal. Sabe-se que esta não constitui lei, tampouco jurisprudência. Nessa razão, converge a literatura penalista no sentido de que a Exposição de Motivos revela, in concreto, mera modalidade de interpretação da lei penal, qual seja, interpretação doutrinária ou científica.
Tal conclusão implica a não vinculação do intérprete, de modo que o operador do Direito não está adstrito aos termos contidos na Exposição, podendo, desde que fundamentadamente, entender de maneira diversa.
Contemporâneo do Ministro Francisco Campos, redator da Exposição do Código de 1940, Nélson Hungria qualificou como “sucinta e precisa” a redação do aludido documento, evidenciando sua inclinação à aplicabilidade plena da teoria da actio libera in causa.
Ainda comentando a Exposição de Motivos do Código de 40, Hungria teceu a seguinte glosa:
Do mesmo modo que no caso da emoção ou paixão foi aceita, na sua moderna latitude, para reconhecimento da responsabilidade do delinquente ébrio (por efeito do álcool ou qualquer outro inebriante ou estupefaciante: ópio, éter, cocaína, clorofórmio, escopolamina, ciclopropana, protóxido de azoto, barbitúricos etc.), o princípio das actiones libere in causa. Em face deste, persiste a responsabilidade do indivíduo que, colocando-se em estado de transitória perturbação fisiopsíquica por ato voluntário seu, ainda que simplesmente culposo, vem em seguida a praticar uma ação (ou omissão) violadora da lei penal.
Diante de todo o exposto, conforme lição de Rudolf Ihering de que “o Direito é uma ideia prática, isto é, designa um fim, e, como toda a ideia de tendência, é essencialmente dupla, porque contém em si uma antítese, o fim e o meio”, concluir que a adoção da teoria da actio libera in causa decorre de deficiência teórica do legislador equivaleria a negar a essência do Direito, consubstanciada na liberdade de interpretar as normas postas.
Em que pese a opção legislativa, inclinada à aceitação da teoria em sua plenitude, impende a cada intérprete analisar, segundo suas convicções jurídicas, se agiu bem o legislador. Afigura-se, portanto, opção de política criminal que, malgrado não atenda aos preceitos do conceito analítico de crime, viabiliza a reprovabilidade da conduta do agente que tenha se colocado em estado de inculpabilidade de maneira voluntária ou culposa.
Assina o texto: Yezuz Dart Jones Pupo, da equipe de Júri Simulado da Universidade Estadual de Ponta Grossa.