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A “administrativização” do processo penal

A “administrativização” do processo penal

Os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal deveriam ter observância categórica e aplicação imediata. Não é à toa o disposto no art. 5º, §1º, da Carta Maior: “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, vale dizer, os direitos e garantias fundamentais devem ser [leia-se: deveriam ser] efetivados em quaisquer circunstâncias, independentemente de lei regulamentadora.

A forma, no processo penal, como bem ensina Lopes Jr. (2013), é garantia. O processo é o caminho necessário para se chegar a uma pena [ou a uma não pena].

O devido processo penal, com toda a cadeia procedimental de atos sequenciais a serem assegurados, nada mais objetiva do que garantir ao acusado que ele não será condenado sem o respeito imperativo de seus direitos de defesa, bem como que o julgamento será realizado por uma autoridade imparcial.

Autoridade imparcial significa um julgador imparcial, que parta da premissa de que quem alega (Ministério Público) é quem deve provar aquilo que alega (a acusação) integralmente, e de que todo mundo é inocente até que se demonstre cabalmente o contrário (princípio da presunção da inocência, expressamente previsto no art. 5º, LVII, da CF).

O problema, no entanto, é que a lei (lato sensu), no processo penal, nada tem valido, nada tem significado, nada tem representado.

O devido processo penal, que deveria ser rigorosamente observado, não é uma realidade, mas sim um sonho, um delírio: tudo o que se quer é – apenas! – que se respeite a lei. Nada mais! E tudo o que se tem, na prática, é o desrespeito e a inversão dela!

Neste sentido, é possível perceber um fenômeno manifestamente inadmissível: operou-se a administrativização do processo penal.

A forma do devido processo penal está expressamente prevista em lei. Não obstante, direitos e garantias processuais estão sendo “simplesmente” ignorados, como se os princípios da legalidade e do due process of law não tivessem relevância na ordem jurídica pátria.

Dito de outro modo, transformou-se a legalidade em discricionariedade. Invocando os critérios do Direito Administrativo, como conveniência e oportunidade, tem-se deixado de respeitar direitos e garantias fundamentais e normas processuais penais, sem embargo do previsto em lei.

Isto é: atos vinculados, de observância obrigatória, que não deixam espaço para critérios de discricionariedade e conveniência – sob pena de nulidade, por ilegalidade -, foram transmutados, via jurisprudência, em atos discricionários!

Ora, basta analisar os mais diversos julgados – inclusive do ex-Presidente Lula [a quem não estou defendendo nesta Coluna] – para constatar isso.

Normalmente se decide, grosso modo, da seguinte maneira: apesar do disposto na ordem jurídica processual penal, sem embargo da previsão de tal ato/norma/princípio (p. ex., a prisão como última ratio, a observância do art. 212 do CPP, a presunção de inocência, a carga probatória nas mãos do Parquet, o sistema acusatório, segundo o qual o Juiz deve se manter equidistante das partes, sem gestão probatória, etc.), deixo de observar ao devido processo penal porque eu, julgador, assim entendo mais pertinente. E assim o faço porque tudo posso, se o réu não comprovar prejuízo.

Em última análise, tem-se decidido da seguinte maneira: a lei não é a lei. A lei sou eu!

Ou seja, como já apontei em outro espaço, criou-se uma cultura jurisprudencial de que a lei pode ser discricionariamente maculada no âmbito do Poder Judiciário.

Por sinal, a exigência de que o acusado demonstre o prejuízo decorrente da inobservância de seus direitos e garantias fundamentais para que a nulidade seja reconhecida é, no mínimo, incongruente.

Isso porque equivale a uma exigência de que o réu faça prova de ter direitos aos seus direitos! Pois seus direitos – enfim: a lei! – só serão efetivados se ele comprovar o prejuízo sofrido! Do contrário, ele não tem direitos e garantias…

Além do mais, que prejuízo poderia ser maior para um acusado do que a condenação criminal? Se maculada a forma, que é garantia, e o réu for condenado, não há que se cogitar que deva ele demonstrar o prejuízo sofrido para o reconhecimento de nulidade. O prejuízo está escancarado, evidente, é de clareza solar: o due process of law não fora assegurado e ele fora condenado!

Não há prejuízo maior do que este no processo penal!

Não bastasse isso, verifica-se evidente nulidade, por afronta ao dever constitucional de motivação dos atos decisórios (art. 93, IX, da CF), quando a autoridade judicial desrespeita a lei (p. ex., invertendo atos) com base no princípio pas de nullité sans grief (não há nulidade sem prejuízo – art. 563 do CPP).

Com efeito, na grande maioria dos casos, a norma processual penal é invertida ou “simplesmente” ignorada com fulcro no artigo 563 do CPP, sem maiores considerações por parte da autoridade judicial.

Vale dizer: não há fundamentação, com exposição de todos os motivos pelos quais se “poderia” desrespeitar o devido processo penal. Há apenas um “migué fundamentativo”, consistente na mera alusão à norma do Código de Processo Penal.

Ora, fazer-se alusão à norma, sem a exposição dos motivos do porquê não existiria prejuízo, não é decidir fundamentadamente, mas sim macular ao devido processo penal discricionariamente.

Trago à tona dois exemplos  (já que o espaço é limitado), um envolvendo autoridade judicial e outro a fase de investigação preliminar. O primeiro todos já conhecem: a corriqueira violação do artigo 212 do Código de Processo Penal.

Apesar do CPP ser expresso e claro na matéria, no sentido de que, para garantir a imparcialidade do juízo, este deve limitar-se a fazer perguntas complementares, já que não goza de gestão da prova e a carga probatória é toda da acusação (Lopes Jr., 2013), no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais a regra é outra: é a iniciativa probatório pelo magistrado, baseada unicamente (sem fundamentação!) no art. 563 do CPP!

O outro exemplo é (também) manifestamente grave. Há pouco tempo, durante uma partida de futebol da série A do Gauchão 2018, a torcida em geral, de um determinado clube do interior do Estado, protestava contra a Brigada Militar que estava, devido a sua colocação no estádio, obstando a visão do jogo.

Alguns agentes policiais se sentiram ofendidos e, em meio a uma multidão de torcedores, selecionaram alguns e lhes imputaram a prática dos crimes de desacato e ameaça.

Detalhe. O boletim de ocorrência policial fora registrado mais ou menos no seguinte sentido: “os determinados torcedores desacataram e ameaçaram os agentes da Brigada Militar. Contudo, em razão do barulho da torcida, não fora possível ouvir as palavras proferidas por eles e tampouco quem seria o autor de cada “ofensa”/”ameaça”!”

Mais. O pior está por vir: os agentes estatais, ofendidos por aquelas palavras que não puderam identificar e escutar, conduziram os pobres torcedores ao VESTIÁRIO do clube futebolístico e, no interior do vestiário, com o acompanhamento do Pelotão de Operações Especiais, mediante grande pressão sobre os desgraçados torcedores, formalizaram um B.O e realizaram o “interrogatório” deles, fazendo constar na ocorrência policial.

Em seguida, a Brigada Militar providenciou a lavratura do Termo Circunstanciado.

Perceba-se a imparcialidade na lavratura do TC: o B.O fora registrado (ou seja, formalizado, redigido) pelas próprias vítimas diretas e indiretas dos supostos “crimes” (e não por um agente imparcial, escutando a versão deles, p. ex), mediante auxílio de seus colegas de farda, que também seriam vítimas indiretas do(s) fato(s), num interior de um vestiário, sob pressão; os supostos autores do fato não puderam fazer constar tudo aquilo que desejavam, já que a lavratura da notitia criminis fora limitada, orientada e determinada pela vontade das vítimas; o “interrogatório policial”, que seria a colheita da versão dos investigados, ocorrera pelas próprias vítimas diretas e indireta do(s) fato(s); e, pasmem, a colheita das versões das “vítimas” diretas/indiretas ocorreu por elas mesmas e seus colegas, que também seriam vítimas indiretas do suposto desacato consistente em palavras que não se escutou.

E o Estado, possivelmente, ofertará a esses pobres sujeitos o benefício da transação penal, uma vez que, na prática, a transação penal é formulada antes de se analisar ser caso de arquivamento ou não do expediente investigativo (para se trabalhar menos!), ou seja, é oferecida contra legem, em afronta ao caput do art. 76 da Lei n.º 9.099/95 (leia mais sobre isso aqui).

Eis o processo penal brasileiro: é o processo penal da colheita de declarações e de realização de “interrogatórios” em vestiários de clubes de futebol, por autoridades incompetentes…

Parafraseando Thiago Minagé, vivemos em um mundo onde a teoria não se aplica na prática.

A pergunta é: o que esperar de um processo penal onde a colheita de versões se realize no interior de um estádio de futebol pelas próprias vítimas, mediante pressão, por uma autoridade incompetente, já que não incumbe à Brigada Militar a função de polícia judiciária?

Vivemos tempos sombrios…


REFERÊNCIAS

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. – 10. ed. – São Paulo: Saraiva, 2013.

Guilherme Kuhn

Advogado criminalista. Pesquisador.

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