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Advocacia criminal na berlinda: quem tem medo da criminologia crítica?

Advocacia criminal na berlinda: quem tem medo da criminologia crítica?

Não podemos banalizar e desvirtuar o sentido atribuído à expressão “ciências criminais” da virada do século até os dias atuais. Tal qual o título do presente canal, não é à toa que acompanhamos a constante mutação do formato e das nomenclaturas dadas aos bons cursos e linhas de pesquisa de pós-graduação no país, em sua grande maioria não mais limitados ao estudo doutrinário e jurisprudencial das tradicionais disciplinas penais.

Assim como todas as formas de saber se pautam no acúmulo de conhecimento, as ciências criminais representam uma organização global de disciplinas consciente da complexidade da questão criminal, não por acaso reconhece a limitação da dogmática e a necessidade de que haja diálogo interdisciplinar do direito, do processo e da execução penal com a criminologia e a política criminal, bem como com a sociologia, a psicanálise, a antropologia, a filosofia política, a criminalística etc.

Na verdade, no curso cíclico da história, desde a baixa Idade Média, período no qual foi publicado o Malleus Maleficarum (1487), já se tinha uma imposição interdisciplinar. Porém, perpassada a primeira Modernidade penal clássica, é na segunda metade do século XIX que se consolidará o modelo oficial da gesamte Strafrechtswissenschaft, de Liszt, no qual o direito penal estará interligado com a política criminal e a criminologia – esta última então “disciplina auxiliar” à dogmática, positivista e fundada no paradigma etiológico-causal.

Em 2008, Vera ANDRADE (2008, p. 23) publicou um importante e atualíssimo texto discutindo o tratamento dado à criminologia no ensino jurídico em nosso país, tendo afirmado a importância de seu papel

para a formação de uma consciência jurídica crítica e responsável, capaz de transgredir as fronteiras, sempre generosas, do sono dogmático, da zona de conforto do penalismo adormecido na labuta técnico-jurídica; capaz de inventar novos caminhos para o enfrentamento das violências (individual, institucional e estrutural) (…).

É que hoje, o que há de melhor em criminologia se desenvolve de forma anti-hegemônica como criminologia crítica. Mas crítica do quê? Crítica da pena, do direito penal, do sistema de justiça criminal e, em última análise, do próprio sistema político-econômico configurador das demandas por ordem e punição.

Desde a economia política da penalidade, a crítica criminológica trabalha com a hipótese segundo a qual os sistemas produtivos tendem a descobrir seus respectivos sistemas punitivos (Rusche e Kirchheimer). Assim, ao apostar na politização da questão criminal que elucida as relações de conflito e poder (Cf. FOUCAULT, Michel. Surveiller et punir: naissance de la prision. Paris: Gallimard, 1975; MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013; DE GIORGI, Alessandro. Il governo dell’eccedenza: postfordismo e controllo della moltitudine. Verona: Ombre corte, 2002; PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Trad. Ignacio Muñagorri. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002), desconstruirá os pressupostos do positivismo criminológico e da ideologia da defesa social, bem como atestará a perda de legitimidade do sistema penal face ao não cumprimento das funções declaradas da pena.

Em suma: ao contrário do que sustenta uma oportunista película que entrou em cartaz no boom do “lava-jatismo”, definitivamente a lei não é para todos.

Razão pela qual, se vivemos em uma sociedade desigual, o direito penal é um instrumento garantidor da desigualdade social – sob a ótica dos processos de criminalização secundária (por estereótipo, comportamento grotesco/trágico ou falta de cobertura) entenderemos porque, na dicotomia entre funções “manifestas” e “latentes”, a crise do sistema penal – tal qual a educação em nosso país (a relembrar o imortal Darcy Ribeiro) – é, na verdade, um projeto.

Desse modo, se as máscaras do sistema penal caem, e se compreende de vez que sua problemática não é conjuntural, mas estrutural, a advocacia criminal não pode permanecer estanque sendo a mesma, esperando que o mitológico “bom direito” se concretize quando a “eficácia invertida” é a sua “lógica normal”. Com o necessário reposicionamento tático, cabe a quem milita, de forma efetivamente combativa, dotada de estratégias artesanais tecnicamente pensadas, reduzir os danos decorrentes do poder punitivo e salvar vidas, as quais, para o cárcere, são descartáveis – eis o modus operandi exigido de quem honra seu lugar nas trincheiras.

Mas sem criminologia crítica, se diz e se vende: “na prática, a teoria é outra!”. Partindo da ideia de que as faculdades não ensinam a advogar, os “empreendedores morais” (Becker) reproduzem um slogan que se hegemoniza no marketing jurídico que vende “autoridade” para incautos recém-chegados. Mas quem visa a cindir teoria da prática, a rigor: (a) não compreende a relação de unidade entre as expressões; (b) não sabe que a teoria é uma prática; (c) se limita a estudar dogmática ortodoxa; e, (d) desconhece a criminologia crítica.

Na inversão dos holofotes da advocacia criminal “da ostentação” ou “de granito” – como costuma dizer o criminalista paraense Mario da Rocha –, é preciso retomar as lições éticas sobre o dever do advogado prestadas por Ruy BARBOSA (2007, p. 60) à Evaristo de Moraes Filho. Lembremos que, por mais gravosas que sejam as acusações e sólido seja o arcabouço probatório contrário ao réu,

tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa.

Então, se a questão é propriamente de humanidade, abandonemos o conhecido brocardo segundo o qual “o advogado criminalista não defende o criminoso, mas o direito”, e reconheçamos que defendemos pessoas de carne e osso, culpadas ou inocentes, que foram criminalizadas.

Ao mesmo tempo, se por um lado a contínua associação entre as figuras do defensor e de seu constituinte – a rigor, o “inimigo” da sociedade – de fato constitua um dos indícios contemporâneos da criminalização da advocacia, por outro, é preciso entender que o processo penal é o espaço de luta em defesa do mais débil (Ferrajoli), isto é, o réu (antes, investigado; depois, apenado) – via de regra, marginalizado, vulnerável aos processos de criminalização orientados pelo estereótipo, conforme atestam os dados oficiais (Infopen/MJ, CNJ e ICPS).

Portanto, temer o estigma de ser tachado de “defensor de bandido” ou é questão de moral (imoral?) particular que não deve, de modo algum, constituir preocupação do defensor realmente preocupado em defender o próximo, ou, no mínimo, desconhecimento do território no qual o jogo é jogado – que está muito além de um tabuleiro neutro onde “se faz justiça”, conforme se percebe desde Il processo come giuoco (1950), de Piero Calamandrei, até o Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos (2020), de Alexandre Morais da Rosa.

Por sinal, demonstrar a importância da criminologia para a atuação cotidiana dos agentes que atuam nas trincheiras do processo penal, foi o que procurei fazer quando analisei julgados colegiados do TJPA sobre prisões preventivas em sede de habeas corpus, e constatei que a prisão é a regra, e a liberdade é a exceção (SILVA, 2019); e, por conseguinte, que o garantismo – enquanto teoria crítica do direito – por si só não daria conta, já que a seletividade, estruturada em uma sociedade racista, classista e patriarcal, é empírica e vem de fora!

Assim, a advocacia criminal está na berlinda porque está posta em questão, na busca pelo seu contínuo aprimoramento e reinvenção. Afinal, para que a defesa do direito de defesa ocorra, é preciso que se identifique antes o terreno no qual a luta está sendo travada e, para além do processo, estamos todos antes inseridos no próprio sistema penal. Portanto, não sejamos covardes (Evandro Lins e Silva), da autocrítica galguemos um passo além… até a vitória!

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Por que a Criminologia (e qual Criminologia) é importante no Ensino Jurídico. Carta Forense, São Paulo, v. 58, pp. 22-23, 2008.

BARBOSA, Ruy. O dever do advogado: carta a Evaristo de Morais. Bauru: Edipro, 2007.

SILVA, Adrian Barbosa e. Garantismo e sistema penal: crítica criminológica às prisões preventivas na era do grande encarceramento. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.


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Adrian Barbosa e Silva

Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) com período sanduíche na Università di Bologna (UNIBO). Mestre em Sociologia Jurídico-Penal pela Universitat de Barcelona (UB). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Professor do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA) e da Faculdade Estácio do Pará (FAP). Autor de "Garantismo e sistema penal: crítica criminológica às prisões preventivas na era do grande encarceramento" (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019). Advogado Criminalista sócio do escritório Silva & Pereira Advogados Associados, em Belém/PA.

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