O advogado e o dever de comunicação da lei de lavagem de dinheiro
A Lei de Lavagem de Dinheiro, recentemente alterada pela Lei 12.683/2012, contém um amplo rol de atividades profissionais que têm o dever de comunicação ao COAF – Conselho de Controle de Atividades Financeiras -, quando do conhecimento, no desempenho de suas atividades, de indícios da prática de atos que possam configurar lavagem de dinheiro.
Os profissionais que exercem as atividades nos denominados setores sensíveis à lavagem de dinheiro estão positivados nos incisos do art. 9º, da Lei de Lavagem, destacando-se, para o que aqui interessa, a regra do art. 9º, XIV:
Art. 9º - Sujeitam-se às obrigações referidas nos arts. 10 e 11 as pessoas físicas e jurídicas que tenham, em caráter permanente ou eventual, como atividade principal ou acessória, cumulativamente ou não: (...): XIV - as pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza, em operações: a) de compra e venda de imóveis, estabelecimentos comerciais ou industriais ou participações societárias de qualquer natureza; b) de gestão de fundos, valores mobiliários ou outros ativos; c) de abertura ou gestão de contas bancárias, de poupança, investimento ou de valores mobiliários; d) de criação, exploração ou gestão de sociedades de qualquer natureza, fundações, fundos fiduciários ou estruturas análogas; e) financeiras, societárias ou imobiliárias; e f) de alienação ou aquisição de direitos sobre contratos relacionados a atividades desportivas ou artísticas profissionais;
A redação da regra em análise, ao fazer referência aos “serviços de assessoria, consultoria” e “aconselhamento ou assistência de qualquer natureza”, permite questionar se os advogados estariam ou não obrigados a prestar informações ao COAF, nos termos dos arts. 9º a 11, da Lei de Lavagem de Capitais.
Em pergunta direta: têm os advogados, no exercício de sua profissão, o dever de comunicação de práticas em tese ilícitas e relacionadas ao crime de lavagem praticadas por seus clientes?
A resposta a essa pergunta não é tarefa simples e não pode ser dada sem analisar as peculiaridades do exercício da advocacia e os deveres legais que envolvem a profissão.
Nesse contexto, é de se esclarecer que a advocacia está inserida no rol de atividades em que o sigilo sobre informações obtidas no exercício da profissão é imposto por lei.
Assim, o Estatuto da Advocacia assegura ao profissional do direito a prerrogativa de se recusar a depor como testemunha sobre fatos ou informações de que tenha conhecimento em decorrência da sua profissão (art. 7º, da Lei 8.906/94), cometendo infração disciplinar o advogado que viola o sigilo profissional sem justa causa (art. 34, VII, da Lei 8.906/94).
A posição que se defende, porém, não é unânime. Há na doutrina quem entenda que, para efeitos de comunicação de atividades atípicas, o exercício da advocacia deve ser compreendido em um duplo aspecto. Por um lado, há a atuação do advogado em sede processual, que estaria imune ao dever de comunicação.
Por outro lado, nas hipóteses de assessoria operacional – no âmbito de contratos e demais atividades extraprocessuais – o dever de comunicação se imporia (GRANDIS, 2017) – um resumo dessa posição pode ser visto na obra de CALEGARI e WEBER (2014, p. 122).
Com o devido respeito, mas a posição não pode ser aceita, notadamente porque nem o Estatuto da Advocacia nem a Lei de Lavagem de Dinheiro promovem, de forma explícita, uma distinção entre as atividades contenciosa e consultiva no âmbito da advocacia, para efeitos de afastamento do sigilo profissional.
E nesse ponto, sequer se poderia sustentar que a Lei de Lavagem revogou – expressa ou tacitamente – o dever de sigilo imposto aos advogados contido nas previsões do Estatuto da Advocacia.
A tese da inexistência de revogação é de simples constatação, pois: (a) a Lei de Lavagem não revoga expressamente o Estatuto da Advocacia; (b) tampouco regula inteiramente a matéria do Estatuto e; (c) não há incompatibilidade entre as disposições de ambas as leis.
O caso, em realidade, é de antinomia aparente de regras e se resolve pela aplicação do critério da especialidade. Assim, o dever geral de informação de atividades suspeitas ao COAF não se aplica aos advogados – seja em atividade contenciosa ou consultiva -, pois o Estatuto da Advocacia exime esses profissionais do dever de comunicação em decorrência da obrigatoriedade do sigilo (BADARÓ e BOTTINI, 2013, p. 143).
Reforça essa conclusão o fato de que as atividades privativas do advogado (art. 1º, da Lei 9.806/94) consistem na postulação perante órgãos do Judiciário, bem como a prática de atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas, de modo que as referências genéricas à atividade de consultoria e assessoria previstas na Lei de Lavagem não contemplam as previsões específicas do Estatuto da Advocacia.
Mais uma vez, lex specialis derrogat generali (CALLEGARI e WEBER, 2014, p. 122).
Conclui-se então que a regra do art. 9°, XIV da Lei 9.613/98, não se aplica ao advogado quando do exercício de atividades privativas da advocacia, quaisquer que sejam elas.
Ademais, seria de todo insensata a tentativa de aplicação do dever de comunicação à advocacia, pois inviabilizaria a atividade privativa do advogado, marcada indelevelmente por uma estrita relação de confiança com o cliente. Quebrar essa relação, exigindo legalmente a comunicação, implicaria tornar o advogado informante do delito de lavagem de dinheiro, inviabilizando em larga medida o exercício da profissão (BADARÓ e BOTTINI, 2013, p. 144).
Por outro lado, nas hipóteses em que o advogado exerce atividades não privativas, como administração de bens, mandatário para representação não processual, gestor de negócios etc., o dever de comunicação se impõe:
(...) o advogado que atua dentro dos limites da representação ou da consultoria, assessoria ou direção jurídica – atos típicos de advocacia – não tem o dever de comunicar fatos suspeitos de lavagem que cheguem ao seu conhecimento no exercício da função. (...) o profissional que exerce funções de gestão de bens, administração de fundos, ou qualquer outra distinta das atividades descritas no art. 1° da Lei 8.906/94 (Estatuto da OAB) deverá comunicar os atos suspeitos de lavagem dos quais tenha conhecimento (desde que tais atividades estejam dentre aquelas elencadas no art. 9° da Lei de Lavagem de Dinheiro). - g.n. - (BADARÓ e BOTTINI, 2013, p. 148.)
Ainda nesse tema, questão completamente diversa será a conduta do advogado que tem conhecimento de que seu trabalho será usado para o mascaramento de bens, direitos ou valores ilícitos e ainda assim aceita participar da prática de atos que configuram ocultação e/ou dissimulação de ativos de origem ilícita.
É a situação, por exemplo, do “advogado que recebe valores a título de honorários e devolve parte deles como suposto empréstimo ou pagamento de serviços inexistentes ao cliente, contribuindo para seu mascaramento” (BADARÓ e BOTTINI, 2013, p. 147). Cuida-se, na hipótese, de profissional que se utiliza da qualidade de advogado para praticar ilícitos penais, algo inaceitável e que deve ser punido.
No entanto, vale frisar que não se deve confundir a prática de atos que configuram lavagem de dinheiro com o mero recebimento de honorários de origem ilícita, para o exercício legítimo da profissão, ainda que se tenha conhecimento prévio da origem espúria.
É que o tipo penal da lavagem de dinheiro exige um especial fim de agir, consistente na vontade de ocultar ou dissimular a origem de ativo ilícito, o que não ocorre quando o profissional recebe valores para prestar um serviço lícito (CARVALHO e COUTINHO, 2015, p. 07-35).
Em outros termos: receber valores, na qualidade de advogado, para defender ou assessorar um cliente – processual ou extraprocessualmente – não é crime, independentemente da origem do dinheiro, pois:
Não se ignora que se poderia considerar o art. 1º, § 2º, I, que incrimina a atividade daquele que “utiliza, na atividade econômica ou financeira, bens, direitos ou valores provenientes de infração penal”. Ele, contudo, trata de uma fase pós-recebimento, quando os valores já fazem parte do patrimônio do sujeito ativo. Assim, estabelece-se um corte na possibilidade de imputação, pois o advogado já recebeu os honorários em virtude de seu trabalho lícito (...) (CARVALHO e COUTINHO, 2015, p. 07-35).
Apenas se o recebimento dos honorários ocorrer com a intenção de dissimulação ou ocultação da origem ilícita do bem, direito ou valor é que poderá estar configurado o branqueamento de capitais.
REFERÊNCIAS
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
CALLEGARI, André Luis; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Atlas, 2014. p. 122.
CARVALHO, Edward Rocha de.; COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Lavagem de dinheiro e o advogado: recebimento de honorários. In: Revista Duc In Altum – Cadernos de Direito, Recife: FADIC, vol. 7, nº12, mai.-ago./2015. p. 7-35.
GRANDIS, Rodrigo de. Considerações sobre o dever do advogado de comunicar atividade suspeita de “lavagem” de dinheiro. Disponível AQUI. Acesso em 18.set.2017.