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O advogado do faccionado

O advogado do faccionado

As questões que pretendem ser aqui enfrentadas, respeitado o espaço delimitado, são: quais os limites éticos para atuação como defensor de um agente que pertence a uma organização criminosa, mais especificamente, uma facção presente nas penitenciárias de nosso país?

Pode a atuação do advogado ser considerada como parte da atividade criminosa? De modo especifico, em que circunstâncias a atuação do advogado pode ser considerada típica, sendo enquadrada, por exemplo, no art. 2º, § 1º da Lei 12.850/13?

Para ensaiar uma reposta serão primeiramente assentados alguns comentários sobre a relação entre direito e moral no Estado Democrático de Direito.

Num segundo momento, aspectos atinentes ao Código de Ética e Disciplina do Advogado serão colacionados, no esforço de, a partir destas duas matrizes, fornecer reflexões úteis para primeira questão proposta.

Por último, será realizada uma breve análise da possibilidade de criminalização da conduta do advogado de defesa, com a proposta de reflexão a partir de uma analogia com a advocacia prestada a empresas acusadas de fraude ao fisco.

A afirmação de que direito e moral foram absolutamente cindidos com a modernidade é, no mínimo, imprecisa. Isso porque não é possível, nem mesmo para teóricos sistêmicos e/ou funcionalistas, a suposição de um direito puramente calcado numa razão apriorística, desconectada da realidade social de onde emanam as normas.

O próprio Kelsen, autor da célebre Teoria Pura do Direito (por vezes vilipendiada e reduzida a uma “doxa” nada coerente) reconhecia o conteúdo moral das normas jurídicas, rechaçando, porém, a legitimação do Direito pela Moral, a absolutização da Moral e a afirmação de que o Direito é, em essência, Moral. Colhe-se de suas lições:

A exigência de uma separação entre Direito e Moral, Direito e Justiça, significa que a validade de uma ordem jurídica positiva é independente desta Moral absoluta, única válida, da Moral por excelência, de a Moral. Se pressupusermos somente valores morais relativos, então a exigência de que o Direito deve ser Moral, isto é, justo, apenas pode significar que o Direito positivo deve corresponder a um determinado sistema de Moral entre os vários sistemas morais possíveis (KELSEN, 2009, p. 75).

Nota-se que o jurista austríaco, em sua tentativa de construção de uma teoria objetivamente científica do direito, apregoava a necessidade de desvincular a validade da norma de juízos morais sem, contudo, negar o fato de que a normas jurídicas, em seu nascedouro, estão embebidas em discursos morais (por vezes divergentes entre si).

O que se pretende destacar é que os argumentos que serão elencados para tratar da primeira questão, proposta no início, não significam a negação do conteúdo moral das leis.

O que se preconiza é que o debate acerca do conteúdo moral dos atos normativos seja concretizado, com seu intrínseco pluralismo, no momento e no local democraticamente eleito para este fim, ou seja, nas discussões que dão ensejo a confecção da norma positiva, no mais amplo espaço possível.

Não caberá ao poder judiciário atuar como regulador do conteúdo moral das leis, uma vez que não está legitimado para tanto. Nunca é demais lembrar que no Estado Democrático de Direito, organizado sob o princípio republicano, o judiciário não é eleito, ocupando o papel, não de consolidador da moral da maioria, mas de garantidor dos direitos das minorias e protetor fiel da legalidade.

Esses excertos relacionados à teorização sobre a relação entre direito e moral deverão ser úteis na avaliação da atuação do advogado de defesa quando chamado a prestar serviços para um agente que está inserido num contexto de visceral criminalidade, como os faccionados nas penitenciárias.

Não é demais observar que os que conhecem o sistema prisional brasileiro sabem, para além de qualquer dúvida, que no mais das vezes o pertencimento a uma das organizações que efetivamente controlam os assuntos internos das penitenciárias não é uma escolha moral, mas a única opção possível de sobrevivência, sem exageros.

Isto não é dito com o intuito de legitimar ou justificar a atuação destas organizações, mas para demonstrar o grau de complexidade das questões que estamos a considerar.

Assim, a atuação do advogado na defesa dos direitos de um faccionado não pode ser valorada com base num catálogo moral externo a essa realidade e a essa relação específica. O que pode (e deve) ser feito é avaliar os limites normativamente impostos pela ordem jurídica para esta atuação.

Ressalte-se ainda que atividade do advogado, essencial à administração da justiça (art. 133 e 134 CF/88), assim como os direitos fundamentais de assistência por um advogado e de defesa (Art. 5º, LV e LXIII CF/88), são garantias colocadas em abstrato na Lei Maior, justamente porque não se relacionam com a qualidade do agente ou com a gravidade de seu delito, mas com a instituição democrática do direito de defesa em essência.

Sendo inapropriado avaliar a atuação do advogado de defesa com base em um catálogo moral específico, cabe analisar o que preconiza o Código de Ética e Disciplina da OAB para atuação do defensor.

Os artigos que parecem mais relevantes são os seguintes:

Art. 20. O advogado deve abster-se de patrocinar causa contrária à ética, à moral ou à validade de ato jurídico em que tenha colaborado, orientado ou conhecido em consulta; da mesma  forma,  deve  declinar  seu  impedimento  ético  quando  tenha  sido  convidado pela outra parte, se esta lhe houver revelado segredos ou obtido seu parecer.

Art. 21. É direito e dever do advogado assumir a defesa criminal, sem considerar sua própria opinião sobre a culpa do acusado.

Uma leitura conjunta destes dois artigos parece fornecer a seguinte baliza orientativa: ao advogado que atua na defesa criminal não é permitido atuar quando a causa em si possui um fundamento antiético, imoral ou antijurídico.

Assim, o advogado não agiria como intermediário na tentativa de suborno de um magistrado ou se comprometeria ex ante a defender um ato premeditadamente ilícito, quem sabe orientando o iter criminis. Ao mesmo tempo, possui o advogado que atua na causa criminal o “dever” de fazer valer os direitos a que todo cidadão faz jus.

Por mais que seja difícil para o senso comum compreender este ponto, a gravidade do delito ou o comprometimento com uma organização criminosa não faz com que a pessoa perca seu status de pessoa para o direito.

Um dos preços mais caros a pagar pela democracia é o limite da punição nos moldes da culpabilidade, princípio basilar do direito penal constitucional, direcionando qualquer sanção penal tão somente aos atos praticados e não aos autores e seu modo de vida.

Por fim, cabe esboçar uma reflexão sobre os limites normativos estritamente penais no que diz respeito a atuação do advogado defensor.

Para que fique mais claro o ponto que se quer discutir, pense-se na seguinte situação hipotética: determinado advogado é contrato por familiar de uma pessoa que está presa e que pertence a uma das facções que controla o estabelecimento.

O advogado atua nos limites éticos acima apontados, restringindo-se a utilizar os mecanismos legais aplicáveis para o caso concreto, ou seja, atua exatamente do mesmo modo como faria para um outro cliente qualquer.

Após receber os honorários e finalizar os serviços, o advogado é contato por um outro colega de cela daquele primeiro cliente, que pertence à mesma facção e que também deseja receber seus serviços.

Casos assim se somam, até que o advogado se percebe defendendo diversos membros que pertencem àquela organização. Ele conhece o fato de que todos se identificam com a facção.

Ao tratar dos honorários, o advogado não faz a exigência de que sejam transferidos para sua conta por um membro da família do sujeito que está sendo defendido. Assim, muitas vezes os valores são transferidos por terceiros. Nas conversas por mensagem o advogado passa a ser reconhecido como alguém que atua para a “família”, termo pelo qual em geral os faccionados se referem à organização a que pertencem (facção).

Pode a atividade deste advogado ser enquadrada como “integrar organização criminosa”, nos termos do art. 2º da Lei 12.850/13, calcando, por exemplo, a tipificação no parágrafo primeiro, que estabelece a mesma sanção penal para quem “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.”?

Quer parecer que, limitando-se o advogado a atuar na defesa de atos específicos, utilizando-se estritamente dos mecanismos legalmente estabelecidos, isso não é adequado.

Criminalizar a atuação do advogado nestes casos gera uma quebra de prerrogativas essenciais à atuação da defesa, uma vez que os critérios para estabelecer o “pertencimento” do advogado se pautarão por elementos subjetivos e imprecisos, como o grau de “intimidade” do advogado com os membros da facção.

Outra possibilidade é que a tipificação fique dependente de uma formalidade extratípica, como o pagamento oriundo não de familiares diretos do cliente preso.

É fácil perceber como esta formalidade pode ser “driblada” e não configura critério seguro para determinar que o advogado possuía comprometimento com os fins e atos da organização criminosa em si.[1]

Para reforçar este último ponto imagine-se que um outro advogado é contratado para realizar a defesa de uma empresa estabelecida com o objetivo de fraudar o fisco (empresa “de fachada”).

Suponha-se que os honorários deste advogado sejam pagos através de uma transferência da conta desta empresa, que por meio da suposta fraude de que é acusada adquiriu ativos suficientes para este pagamento.

Poderia o advogado ser acusado de integrar a empresa fraudulenta? A resposta negativa se basearia simplesmente no fato de não figurar no contrato social ou não ter participado das reuniões através das quais os sócios definiram os planos ilícitos?

O assunto proposto é delicado. Nenhuma locução de poucas páginas dará conta de observar todos os pontos que merecem atenção. Não se olvida o fato de que a atuação profissional do advogado deve obedecer limites precisos e ser pautada pelo comprometimento com a ética e os fundamentos do Estado Democrático de Direito.

Ainda assim, as tentativas de criminalização do advogado não parecem ser ferramenta idônea e legítima para se alcançar esse desiderato.

Mais do que isso, muitas propostas neste sentido parecem pautar-se despudoramente pelo desejo de restringir direitos fundamentais de defesa e estabelecer uma “presunção de desonestidade”, pesando sobre aqueles que labutam em favor da constitucionalização do poder de punir.


REFERÊNCIAS

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8ª ed. São Paulo: Editora WMS Martins Fontes, 2009


NOTAS

[1] Seja notado que a Lei 12.850/13 liga o conceito de organização criminosa aos fins almejados pela associação das pessoas que a compõe. No artigo 1º, § 1º, estabelece explicitamente que a tipificação se dá pelo fato de que quatro ou mais pessoas se reuniram “com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.” Uma leitura coesa da lei penal demonstra assim que o comprometimento com os fins almejados pela associação precisa compor o dolo de todos os que a integram, não podendo ser considerados como “membros” todos os que, de qualquer forma, colaboram para que a organização atinja seus fins. Admitir esta possibilidade significaria dizer que o fabricante de telefones infiltrados na penitenciária, ao criar aparelhos pequenos e leves, colabora com a facção em seu uso dos mesmos para perpetrar seus objetivos. Quando o parágrafo 2º vai mencionar simplesmente “integrar” a organização, este artigo precisa ser lido em consonância com o que previamente estabeleceu oi artigo 1º.

Paulo Incott

Mestrando em Direito. Especialista em Direito Penal. Advogado.

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