Afinal, ainda vale tudo no Tribunal do Júri?
Por Bruna Andrino de Lima e Victória Martins Maia. O Tribunal do Júri é conhecido popularmente como o local em que “vale tudo”. Ou seja, o plenário aceita música, poesia, encenação, maquete, vídeos e muito mais, desde que cumpridos os requisitos legais[1] para a defesa do réu. Ainda, até então, poderia ser alegada qualquer tese defensiva, visando a plenitude de defesa. Ocorre que, assim como a sociedade e a cultura passam por mutações, o Júri também deve acompanhar tais processos sociais, ainda que sem alteração legislativa expressa. A ideia aqui não é discutir a constitucionalidade ou não do Júri, bem como suas alterações, mas sim trazer o que ainda é aceito em plenário e o que a sociedade – Conselho de Sentença – não mais admite.
Tribunal do Júri
A exemplo disso, no mês de março do corrente ano (2021), o Supremo Tribunal Federal, julgou na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779, a inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, com decisão unânime, por entender que esse argumento viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero, corroborando com a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra a mulher.
Veja-se que tal vedação abrange não somente os atos da sessão plenária, mas inclusive a fase pré-processual e processual, vedando que autoridade policial, a acusação e o magistrado utilizem a legítima defesa da honra como argumento, direta ou indiretamente, sendo inviável qualquer argumento que possa até mesmo induzir a aplicação da tese em comento.
Mesmo que estivéssemos no campo da análise da culpabilidade do agente, o art. 28 do Código Penal afasta a possibilidade da emoção ou da paixão excluírem a imputabilidade penal, impedindo assim que o julgador pudesse absolver aquele que impelido por ciúme viesse a praticar o ilícito penal.
Ou seja, se desde 2015 existe na legislação brasileira o feminicídio (art. 121, §2º, inc. VI e VII e §2º-A do CP), o qual dá nome e representa a morte da mulher por condição do sexo feminino, como seguir permitindo que seja alegada em plenário a legítima defesa da honra? Como permitir o sentimento de posse, de superioridade, de masculinidade que essa tese carrega consigo? A sociedade já não suporta mais esse tipo de justificativa para barbáries vistas diariamente em um país em que a violência contra a mulher cresce desenfreadamente. Tanto é verdade que, na capital Gaúcha, criou-se uma vara especializada para julgamentos de feminicídios e tentativas de feminicídios (4ª Vara do Júri). A que ponto chegamos.
A cada plenário do Júri, visamos abordar sim todas as teses possíveis e capazes de desencadearem bons resultados aos réus, mas sempre com lealdade, verdade e respeito aos princípios constitucionais, nos moldes do que o Conselho de Sentença é capaz de absorver e interpretar com base nas suas intimidades – íntima convicção. Ainda que o exercício da empatia seja fundamental para os julgamentos, não mais são aceitos discursos de ódio e de machismo que vulnerabilizam mulheres (ocorria muito em casos de morte de prostitutas).
Em que pese a tese em análise não tenha respaldo legal ou constitucional, foi admitida em diversos julgamentos como uma resposta de (in)tolerância da sociedade ao ato agressivo daquele que mantém ou já manteve relacionamento familiar com a vítima, o que vinha ocorrendo há mais de 40 anos! É evidente que isso não pode mais ser admitido. Ainda, é importante frisar que o STF entendeu que a absolvição do agente com alicerce na legítima defesa da honra não é possível nem mesmo pelo quesito genérico de absolvição. Dessa forma, caso ocorra tal situação, deverá o tribunal, mediante recurso acusatório, anular a decisão do Conselho de Sentença, sob fundamento da decisão ser manifestamente contrária à prova dos autos.
É evidente que o direito não acompanha os fatos sociais, de modo que, conforme a sociedade evolui, a legislação e os posicionamentos dos tribunais devem modificar-se, buscando alcançar a evolução do seu povo. É o que ocorre com o reconhecimento da inconstitucionalidade da legítima defesa da honra. A luta diária pelo respeito à integridade e vida da mulher foi ouvida e a decisão consiste em salutar avanço.
Por fim, é necessário lembrar que os jurados representam a sociedade e a sociedade representa a cultura vigente, que, atualmente, busca cada vez mais a igualdade por direitos, independente do gênero, classe ou raça. E essa igualdade deve ser levada ao plenário por nós, tribunos do Júri, porque não – mais – vale absolutamente tudo no Tribunal do Júri.
[1] Vide artigos 422 e 479 do Código de Processo Penal.
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