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Afinal, o que dizer do pacote anticrime?

Afinal, o que dizer do pacote anticrime?

Foi sancionado no último dia 24 de dezembro, véspera de natal, o famigerado “pacote anticrime”, gestado originalmente pelo atual Ministro da Justiça Sérgio Moro. O denominado “pacote” legislativo, surgido nos debates públicos promovidos pelo então juiz responsável pela Operação Lava-Jato no Paraná, foi fruto de diversas discussões nas duas casas legislativas do Congresso Nacional e, nas últimas semanas, ganhou corpo e forma que o levaram a aprovação.

Bastante distinto das ideias originais propostas pelo chefe da pasta da Justiça na Esplanada dos Ministérios, o conjunto de normas que altera especialmente o Código de Processo Penal e o Código Penal já nasceu permeado de polêmicas e discussões das mais variadas matizes. 

A principal delas, pelo menos até o momento, tem sido a figura que se convencionou chamar de Juiz de Garantias. Considerada por muitos como uma das mais importantes alterações do sistema processual penal brasileiro desde a promulgação do Código de Processo Penal nos tempos de Estado Novo, o novel “personagem” do judiciário tem chamado a atenção de diversos setores da sociedade, especialmente dos players do processo penal e, claro, do próprio Ministro da Justiça.

Consubstanciado num discurso meramente estrutural, o Ministro da Justiça – abertamente contrário à figura – asseverou que o Poder Judiciário não detém recursos físicos e humanos para implementar o Juízo de Garantias, muito menos no prazo de 30 (trinta) dias, fixado como tempo de vacatio legis da medida.

Na visão do ex-magistrado, manter um juízo exclusivo para análises de medidas cautelares e probatórias da dita fase pré-processual (com destaque à investigação policial) ofende a celeridade e eficiência que tanto se requer no âmbito do processo penal. 

Ao menos numa análise preliminar, parece-nos que o atual Ministro da Justiça está severamente enganado ou, se muito, movido pela falta de um juízo racional e claro sobre a estrutura que deve ser preservada num processo penal que se pretende democrático.

Partindo-se dos termos elencados na legislação sancionada – e aqui é importante ressaltar que uma melhor conclusão demanda maiores estudos científicos –, um discurso pautado apenas em limitações físicas e humanas não se mostra como suficiente a obstar a consolidação da figura do Juiz de Garantias. 

De início, discursos pautados em limitações estruturais não podem prevalecer diante de garantias fundamentais do cidadão. Ou seja, os problemas derivados da própria ineficácia do Estado não se prestam a impedir o exercício de direitos quando não é o indivíduo que lhes deu causa. O Estado, por força constitucional, assume um caráter prestacional com os cidadãos e por isso mesmo não pode se abster de assim agir. Foi essa a opção adotada pelo constituinte originário e, nessa medida, o próprio Estado deve ser organizar a fim de cumprir tais desideratos basilares.

De todo modo, o discurso não parece se justificar mesmo que se olhe sob o prisma material e humano. É certo que o Poder Judiciário, enquanto serviço público essencial, concentra boa parte dos recursos do Estado e a sua manutenção, com orçamento farto e próprio, é um dos principais investimentos estatais na atualidade.

Isso, por evidente, sem mencionar as facilidades que o processo eletrônico e a videoconferência hoje trazem para a maior parte das comarcas e seções judiciárias do país, permitindo que magistrados e servidores possam analisar processos e provas em quaisquer lugares que estejam, ainda que não fixados fisicamente em tal ou qual comarca.

Em suma, com tantos recursos financeiros, materiais e tecnológicos, parece bastante equivocado aventar a falha estrutural – que se há é por pura desorganização dos gestores públicos – como argumento capaz de selar a sorte de diversos réus e investigados.

Mas o ponto mais importante – e isso tem sido ignorado por parte dos críticos das medidas, inclusive o Ministro da Justiça –, é a ampliação da imparcialidade do juízo da instrução, questão aliás que se tornou bastante cara ao então Juiz Sérgio Moro.

O advento do Juízo das Garantias, ao menos em teoria, vem em benefício da eficiência do processo penal e, sobretudo, em favor da consolidação de um sistema moderno e afinado com o Estado Democrático de Direito.

Ao se retirar o superpoder do Juízo da Instrução, então responsável também pela fase de investigação – quando determinava a fixação de medidas cautelares e medidas probatórias invasivas –, a norma busca maximizar o direito à defesa, reduzindo o impacto das decisões pré-processuais na formação do convencimento do magistrado que sentencia e consolidando a atividade defensiva na fase das instrução processual, maximizando o papel da prova submetida ao contraditório na formação da sentença.

No sistema então vigente, o mesmo julgador, por exemplo, determinava a prisão, então amparado em elementos informativos (que não são provas) que pudessem indicar a existência de indícios do crime, numa espécie e julgamento prévio da causa.

Posteriormente, com o oferecimento da denúncia e instauração do processo penal, este mesmo magistrado deveria se transformar num novo julgador, afastando de seu entendimento eventuais prejulgamentos feitos na fase investigatória, agindo como se tudo aquilo que se apresentasse na instrução fosse uma “novidade” sobre a qual deveria formar seu convencimento sobre a culpa ou inocência de alguém. Todavia, a experiência mostra que tal agir é bastante tormentoso, senão impossível por parte daquele que julga. 

Não se pode olvidar que o magistrado, antes de tudo, é humano, e por ser o humano que é, está sujeito às influências externas e internas que não necessariamente digam respeito à técnica do processo penal. 

A imparcialidade, nesse contexto, torna-se muito mais uma utopia do que uma realidade.

Mas não só. A existência de um julgador onipresente, como no sistema em vigor, tende a criar juízes autoritários e com capacidade de influenciar todo o resultado do processo penal, ainda que para fins não necessariamente jurídicos, pois o magistrado detém o poder absoluto de todas as “pontas” da persecução penal, podendo “dirigi-la” para outros fins.

Inclusive, para muitos réus e especialistas, esse foi o principal ponto fraco na legitimação das ações adotadas no âmbito da Operação Lava-Jato. Se tivesse um juízo de garantias, por exemplo, as acusações de imparcialidade do magistrado, que também condenou os réus que mandou prender quando ainda eram investigados, seriam menores ou até inexistentes.

Por isso até chama a atenção a discórdia veemente do Ministério da Justiça em relação ao Juiz de Garantias, pois a medida, antes de tudo, militaria em seu favor quando era o julgador.

Porém, como dito, somente o passar do tempo e a construção jurisprudencial sobre o assunto permitirá um melhor juízo técnico sobre avanços e retrocessos das medidas. O distanciamento histórico, nesses casos, ainda é fator determinante. Inegável, no entanto, que esse capítulo do projeto apresenta medidas louváveis em defesa do contraditório e da ampla defesa e, principalmente, da imparcialidade do julgador.

Destacamos aqui a separação expressa entre atos da investigação e atos do processo – com determinação de cisão das peças processuais até momento de recebimento da denúncia e depois na produção da prova propriamente dita, limitando a cognição do juiz sentenciante –, a impossibilidade de decretação da prisão preventiva de ofício – expressamente vedada a partir de agora –, e também o afastamento do processo do juiz que teve contato com a prova declarada ilícita.

Em linhas gerais, ao contrário da proposta original de autoria do Ministro da Justiça, o atual “pacote” legislativo apresenta, teoricamente, avanços em áreas sensíveis do processo penal, demandando maiores atenções dos juristas nestas questões, muitas, aliás, que não tiveram maior sucesso em períodos de “estabilidade” político-institucional. 

Ao menos em algumas matérias, as alterações legislativas parecem uma resposta do parlamento aos devaneios autoritários que insistem em surgir na prática jurídico-penal. É dizer: embora muito longe do ideal, as alterações promovidas pelo Congresso Nacional sobre o projeto original (bastante autoritário e punitivo) merecem uma parcela de reconhecimento positivo por parte dos juristas e o grande exemplo, sem dúvida, está na figura do Juízo das Garantias. Talvez seja por isso mesmo que o Ministério da Justiça não “comemorou” tanto assim o resultado do projeto.


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