Afinal, qual é o bem jurídico-penal tributário?
Por Henrique Saibro
No texto anterior buscamos passar uma noção geral do iter do tributo não pago até a sua judicialização que, em alguns casos, quando o Fisco realiza um lançamento de ofício – em razão de o contribuinte não ter se submetido à sua interpretação e ter praticado fraude –, produz repercussões criminais.
Demonstramos, também, que não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo – de acordo com a Súmula Vinculante nº 24. Dadas tais premissas, poderíamos, de antemão, trabalharmos os efeitos que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário pode acarretar no processo penal. Todavia, para alcançar a máxima elucidação de tais efeitos é imprescindível maiores noções acerca do bem jurídico-penal tributário, sendo, pois, o objeto do presente artigo.
Dando um enfoque preludiar, o bem jurídico-penal, diferentemente do bem jurídico em sentido estrito, possui uma série de requisitos próprios para o seu reconhecimento, como uma “consistência axiológica que permita, a partir daí, um processo de concretização, de corporificação, indispensável à análise da ofensa”[1], condições essas que devem coexistir necessariamente “para o reconhecimento de um valor como bem jurídico-penal”[2].
Para o luso VALENTE[3], o bem jurídico possui um escopo essencial para o Direito Penal, pois a função deste é estabelecer um equilíbrio entre a proteção de bens jurídicos dignos de tutela penal – “protecção do cidadão contra quaisquer lesões ou concretos perigos de lesão e a consequente protecção da comunidade política e jurídica – e a defesa do delinquente (de todo o delinquente)”, em razão do arsenal estatal punitivo.
Mas quais são, então, os pressupostos e características específicas do bem jurídico-penal tributário? Já adiantamos que não é uma matéria unânime. Os entendimentos divergem-se entre as correntes (i) patrimonialista, (ii) funcionalista e (iii) eclética – essa última ainda não tendo alcançando autonomia unânime doutrinariamente para emancipar-se totalmente da patrimonialista. Vejamos, então, as premissas de cada abstração.
Corrente Patrimonialista
Para essa corrente, defende-se que o Direito Penal Tributário caracterizar-se-ia diante da “finalidade de defesa dos interesses do Estado ligados à arrecadação dos tributos”[4]. A concepção patrimonialista visa tutelar o “interesse estatal na obtenção de receitas, o resguardo do ingresso patrimonial em si considerado através da punição de condutas que frustrem a arrecadação”[5].
Nesse sentido, ABRÃO ressalta que, em se tratando de crime tributário, a finalidade “quase exclusiva da sanção penal pode ser traduzida no interesse único do Estado de receber o tributo, independentemente de outras formalidades, haja visto cenário de gastos e despesas frente ao orçamento sempre comprometido”[6].
Ao comentar sobre a teoria patrimonialista, BITENCOURT refere que “as posturas patrimonialistas se apresentam, de um modo geral, como as mais coerentes e acordes com os princípios norteadores do Direito Penal mínimo e garantista”[7] – apesar de, ao concluir, defender que a teoria eclética é a mais coerente para delimitar o bem jurídico nos crimes contra a ordem tributária (que será melhor trabalhada em seu respectivo tópico).
Corrente Funcionalista
Cuida-se de uma teoria que rejeita “qualquer conotação patrimonialista ao objeto jurídico dos crimes tributários”[8], pois o bem jurídico em voga estaria vinculado às funções que “a receita tributária deve cumprir para a sociedade ou a consecução dos objetivos constitucionais de um Estado Social e Democrático de Direito”[9].
AFONSO ainda sustenta que merece mérito o ideal funcionalista em razão do enfoque dado à necessidade do cumprimento das normas fiscais, “pois a função tributária explicaria o interesse da Administração na defesa de um interesse público designado pela efetiva realização das normas tributárias”[10]. Sem embargo, o jurista não deixa de expor as principais críticas a respeito dessa tese, como, por exemplo, a de que o interesse público na observância das normas tributárias não difere do interesse estatal como um todo na aplicação “de qualquer norma de ordem pública”[11] – e não só o Estado-fiscal –, de modo que não haveria motivo para ceder qualquer peculiaridade ao crime tributário no que tange ao seu bem jurídico[12].
BITENCOURT não poupa críticas à concepção funcional, dada sua “inegável abstração e generalidade”[13], pois a funcionalidade dos tributos, como, por exemplo, “o custeio e o financiamento das atividades institucionais do Estado e das prestações sociais, somente pode ser atingida de forma mediata pelas ações criminosas individualmente cometidas”[14]. Dessa forma, fica prejudicada a análise do nexo entre as condutas individuais provenientes de sonegação fiscal e a consequência (negativa) a obras e serviços públicos patrocinados pela adimplência de tributos[15] – inclusive no que tange à demonstração da lesividade da(s) conduta(s)[16].
Corrente Eclética ou Pluriofensiva
A teoria eclética é fruto das hodiernas perspectivas patrimonialistas, conciliando aspectos sociais e econômicos relacionados ao tema, procurando reunir as principais vantagens das teorias patrimonialista e funcionalista; propõe, então, uma divisão entre um bem jurídico imediato e outro mediato[17]. Este seria um bem jurídico imaterial, de viés abstrato e intangível, consubstanciado na função social do tributo[18]. Todavia, em razão dessa abstração, RODRIGUES sustenta que apenas o bem jurídico mediato “não seria capaz de servir ao juízo de lesividade, mas apenas ao discurso de legitimação ou deslegitimação das normas”[19]. Daí a importância do bem jurídico imediato, que, segundo RODRIGUES, nessa teoria, apresenta-se de maneira mais concreta como o patrimônio público, cujo viés é supraindividual, permitindo com que uma única conduta de sonegação fiscal possa causar uma efetiva lesão[20].
MACHADO[21] refere que, em que pese aparente ser, o bem jurídico protegido nos crimes tributários não é o mero interesse da Administração Pública na arrecadação dos tributos, senão a ordem jurídica tributária. Complementa aduzindo que nos delitos fiscais “existe um bem jurídico imaterial mediato que estaria integrado pela função tributária”[22], além de um bem jurídico específico imediato, consistente no patrimônio do Estado[23].
Demonstradas de forma bastante sintética – à míngua da extensão do presente artigo – as principais teorias acerca da natureza do bem jurídico nos crimes tributários, veremos, no próximo encontro, o que a suspensão da exigibilidade do crédito tributário acarreta no processo penal.
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[1] D’AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade em Direito Penal: Escritos Sobre a Teoria do Crime como Ofensa a Bens Jurídicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009. p. 97-98.
[2] Idem, op. cit. p. 99.
[3] VALENTE, Manuel Monteiro Guedes. Direito Penal do Inimigo e o Terrorismo: O “Progresso ao Retrocesso”. São Paulo: Edições Almedina. AS, 2010. P. 84-85.
[4] RODRIGUES, Savio Guimarães. Bem Jurídico-Penal Tributário: A Legitimidade do Sistema Punitivo em Matéria Fiscal. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2013. p. 147.
[5] Idem, op. cit. p. 148.
[6] ABRÃO, Carlos Henrique. Crime Tributário: Um Estudo da Norma Penal Tributária. São Paulo: IOB Thomson, 2007, p. 11.
[7] BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 35-36.
[8] AFONSO, Thadeu José Piragibe. O Direito Penal Tributário e os Instrumentos de Política Criminal Fiscal. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2012. p. 95.
[9] Idem, ibdem.
[10] Idem, op. cit. p. 98.
[11] Idem, ibdem.
[12] Idem, ibdem.
[13] BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes Contra a Ordem Tributária. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 35.
[14] Idem, ibdem.
[15] Idem, ibdem.
[16] Idem, ibdem.
[17] RODRIGUES, Savio Guimarães. Bem Jurídico-Penal Tributário: A Legitimidade do Sistema Punitivo em Matéria Fiscal. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2013. p. 155.
[18] Idem, op. cit. p. 156.
[19] Idem, ibdem.
[20] Idem, op. cit. p. 156-157.
[21] Note-se que a lei penal, ao definir o crime de excesso de exação, protege tanto o direito do contribuinte de não pagar tributo indevido como o direito de não sofrer cobrança de tributo, mesmo sendo este devido, por meio vexatório ou gravoso que a lei não autoriza. Resta claro, portanto, que a lei penal protege, isto sim, a ordem jurídica tributária e não o interesse na arrecadação (MACHADO, Hugo de Brito. Crimes Contra a Ordem Tributária. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2011. p. 22).
[22] Idem, ibdem.
[23] Idem, ibdem.