ArtigosProcesso Penal

Agora o sistema processual penal é acusatório?

Agora o sistema processual penal é acusatório?

A lei 13.964/2019, denominada de ‘’pacote anticrime’’, fora elaborada e promulgada no final de 2019 sem um debate efetivo com a academia, profissionais especialistas da área do direito penal, processual penal e execução penal, seguindo os anseios populistas para o recrudescimento das leis penais.

Em que pese as inúmeras críticas a serem feitas, primordialmente no âmbito da execução penal e o recrudescimento da legislação, houveram algumas mudanças positivas, como a previsão expressa e adoção do sistema acusatório, bem como do Juiz de garantias.

A lei n° 13.964/2019 prevê expressamente a adoção do sistema acusatório, nos termos do que dispõe o artigo 3º-B e seus demais incisos. Está previsto também o juiz de garantias, aduzindo nesse sentido:

Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação.

A referida previsão legislativa é um avanço democrático, indo ao encontro do processo penal acusatório, previsto constitucionalmente.

Ressalta MEIRA (2019, p. 145) nesse sentido:

o controle da legalidade é exercido pelo juiz das garantias, sendo o órgão acusador responsável por requerer a ele quaisquer providências, ou seja, não há atos investigatórios proferidos pelo julgador de ofício.

Dentro de um sistema processual acusatório, é fundamental a atuação dos juízes de garantias para efetivar os direitos fundamentais e garantir a ampla aplicação dos direitos processuais penais.

Contudo, o questionamento na aplicação da referida lei é: a mera alteração legislativa é suficiente para garantir de fato um sistema acusatório, observado as claras raízes inquisitoriais do nosso código de processo penal?

Associações de Magistrados, após a promulgação da referida lei, manifestaram insatisfação de muitos com a mudança, aduzindo que a figura dos juízes de garantias não seriam possíveis no cenário atual, pela escassez de membros, primordialmente em comarcas do interior.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal suspendeu por prazo indeterminado a aplicação do juiz de garantias no processo penal.

Outros Magistrados aduziram, ainda, que a medida contribuiria para o “aumento da impunidade”, demonstrando a dificuldade de nos distanciarmos do modelo processual inquisitório. No tocante a base estrutural do sistema inquisitorial, ressalta Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2018, p. 37):

’o sistema inquisitório tem raízes na velha Roma, mormente no período da decadência, e alguns traços em outras legislações antigas. Nasce, porém, na forma como estudamos hoje, no seio da Igreja Católica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de doutrinas heréticas’.

Ainda, ressalta COUTINHO (2018, p. 42) que a característica fundamental do sistema inquisitório está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado no caso concreto. Nesse sentido, observa-se a importância da figura do juiz de garantias para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, possibilitando de fato aos indivíduos que respondem a processos criminais a possibilidade de, na condução da prova, o julgador se manter equidistante das partes.

Isso, pois, a figura de um juiz de garantias prevê um Magistrado para atuar na fase de investigação preliminar, e outro para atuar na fase processual penal, possibilitando que o julgador tenha contato com as provas apenas após sua realização, garantindo a imparcialidade, o que não ocorre no cenário processual penal atual.

Importante obra para analisar as heurísticas e vieses nos processos criminais com estudos na área da psicologia cognitiva é a de Alexandre Morais da Rosa e Paola Wojciechowski (2018, p. 49), ressaltando nesse sentido:

Essa visão tunelada caracteriza-se pela tendência dos investigadores, ao rotular alguém com o status de suspeito/ indiciado, a focar nas evidências que apontam para a autoria desse suspeito e ignorar toda evidência que aponte no sentido da sua inocência, de um novo suspeito ou mesmo da participação de outra pessoa.

Reduz-se, assim, a possibilidade de haver decisões pré-concebidas, ou, aquilo que CORDERO (1986, p. 51) denomina de “quadro mental paranoico”, em que primeiro se decide e depois se busca o fundamento. O viés confirmatório na análise das heurísticas e vieses denotam a complexidade na tomada de decisões no judiciário e os demasiados problemas na tomada de decisões criminais quando o indivíduo atua no processo penal de forma a confirmar sua análise pré-concebida dos investigados em um processo criminal.

Por outro lado, sabemos que a mudança de pensamento, (e primordialmente do pensamento autoritário como vemos no país), não ocorrerá apenas com a mera mudança legislativa, mas sim com a mudança da mentalidade inquisitória para uma acusatória.

Ressalta assim COUTINHO (2018, p. 124):

… nos labirintos do sistema processual penal brasileiro habita Inocêncio III; e não são poucos os que gozam o lugar de um Torquemada. Nunca se terá democracia processual desse modo, por evidente, mesmo se se pensar tão só nos grandes magistrados. Um sistema desse porte, onde se controlam as premissas, não só não é alheio ao solipsismo como lhe incentiva. E o pior é que a Constituição da República não se faz viva.

Nesse sentido, observa-se que apenas a promulgação de uma lei e a previsão do juiz de garantias não é suficiente para superar a mentalidade inquisitória no direito processual penal brasileiro, sendo fundamental a busca pela efetiva aplicação do juiz de garantias e a real implantação do sistema processual acusatório, mantendo o julgador equidistante das partes, de modo a conduzir o processo sem interferir no protagonismo das partes, exarar decisões mais técnicas e lastreadas na dogmática jurídico penal, e primordialmente, garantir a imparcialidade no processo penal.


REFERÊNCIAS

CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986.

COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, Observações sobre os sistemas processuais penais: escritos do Prof. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Organizadores: Marco Aurélio Nunes da Silveira; Leonardo Costa de Paula, Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018.

MEIRA, Thiago Dias de. Juiz das garantias: a mudança da cultura inquisitorial a partir do pragmatismo legal, Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay: Hacia la justicia penal acusatória em Brasil, Dirección: Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Leonel González Postigo, Marco Aurélio Nunes da Silveira, Coordinación: Leonardo Costa de Paula, Observatório da Mentalidade Inquisitória, Curitiba, 2019.

WOJCIECHOWSKI, Paola Bianchi; ROSA, Alexandre Morais da. Vieses da justiça: como as heurísticas e vieses operam nas decisões penais e a atuação contra intuitiva. Florianópolis, Empório Modara, 2018.

Leia também:

É incabível o acordo de não persecução penal em casos de arquivamento


Quer estar por dentro de todos os conteúdos do Canal Ciências Criminais?

Então, siga-nos no Facebook e no Instagram.

Disponibilizamos conteúdos diários para atualizar estudantes, juristas e atores judiciários.

Paula Yurie Abiko

Pós-graduanda em Direito Penal e Processual Penal - ABDCONST. Pós-Graduanda em Direito Digital (CERS). Graduada em Direito - Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE).

Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo