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Ainda temos muito o que aprender com o garantismo penal e processual penal

O atual cenário em que vivemos nos remete à importância de falarmos sobre o garantismo penal, até mesmo porque observamos um excesso de punitivismo, o que coloca em risco o próprio Estado Democrático de Direito.

O garantismo penal

Mesmo após mais de 30 anos da promulgação de uma Constituição Cidadã que avança na proteção das garantias fundamentais, o cenário parece ignorar as garantias e, ao mesmo tempo, esquecer todas as arbitrariedades que tristemente marcaram nossa história.

O Brasil, assim como diversos outros países da América Latina, esteve disposto a contemplar com grande amplitude a tutela dos direitos humanos, introduzindo esse tema em seu ordenamento jurídico interno. Por outro lado, nesse mesmo território é que notamos o expressivo divórcio entre os direitos consagrados na Constituição e a dura realidade. (Llobet, 2016)

Essa realidade mostra a total falta de compromisso com os princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, do devido processo legal, e sobretudo, com o da dignidade da pessoa humana. Isso apenas revela que os princípios democráticos ainda não estão suficientemente arraigados em nossa cultura e a defesa de posições autoritárias compromete a manutenção do Estado Democrático de Direito.

Aury Lopes Jr já alerta sobre a perigosa viragem discursiva (im)posta por movimentos repressivos, que faz com que cada vez mais a liberdade seja provisória, enquanto a prisão cautelar, ou até mesmo a definitiva, passa a ser uma regra. (Lopes Jr, 2019, pág 35)

Seguimos na linha de Norberto Bobbio, segundo o qual o grande problema da atualidade não é o de positivar os direitos humanos, mas sim de efetivamente protegê-los (BOBBIO, 2004, pág 25). Isso porque as garantias tanto penais como processuais são encaradas hoje como mero formalismo, sem dar a devida importância, o que automaticamente nos remete aos regimes em que essas garantias foram eliminadas, em que o ser humano foi um mero objeto do Poder Estatal.

Falar em garantismo é lembrar dos ensinamentos de Ferrajoli, que através dos axiomas do garantismo possibilita verificar um modelo racional de limites ao exercício do poder de punir, consequência dos ideais do iluminismo penal.

Llobet ensina que:

De acordo com o garantismo, o Estado de Direito existe para proteger os direitos dos seres humanos e não têm um fim em si mesmo, pelo que se rechaça as concepções de caráter autopoiético, que são expressão de um Direito Penal Máximo. (LLOBET, 2019, pág 48)

Significa, então, que devemos sempre ficar atentos e lutar pelo Direito Penal Mínimo no campo material e pela rigorosa observância das garantias no âmbito processual, estabelecendo assim, limites ao poder punitivo do Estado.

No Estado de Direito e Democrático, a eficácia de qualquer intervenção penal não pode estar atrelada à diminuição de garantias individuais em prol de um genérico argumento de ordem pública, até porque tais garantias não são favores do Estado, ao contrário, trata-se de uma exigência indeclinável, um fundamento do Estado.

Neste sentido, Lopes Jr ressalta que a proteção do indivíduo resulta de uma imposição do Estado Democrático, já que a democracia trouxe a exigência de que o homem tenha uma dimensão jurídica que o Estado ou a coletividade não pode sacrificar. O que necessita ser legitimado e justificado é o poder de punir, ou seja, a intervenção estatal, e não a liberdade individual (Lopes Jr, 2019, pág 39)

Ressaltamos aquilo que Norberto Bobbio afirmou ao prefaciar a obra de Ferrajoli:

O garantismo é um modelo ideal, do qual nós podemos mais ou menos aproximar. Como modelo, representa uma meta que permanece como tal, ainda que não seja alcançada e não possa jamais ser alcançada inteiramente. Mas, para construir uma meta, o modelo deve ser definido em todos os aspectos. Somente se estiver bem definido poderá servir de critério de valoração e de correção do direito existente. (BOBBIO, 2002)

É importante destacar que o garantismo consiste essencialmente, na tutela dos direitos fundamentais, uma vez que as garantias são consideradas como técnicas de limitação da atuação estatal, além de um meio para realização dos direitos sociais. [1] (SCHEID, 2009, pág 55)

Assim, essas breves linhas apontam apenas para importância de se estudar o garantismo, debruçando-se sobre a sofisticada obra do jurista italiano, observando os aspectos problemáticos da nossa Justiça criminal, onde a relativização de garantias tem sido frequente com argumentos superficiais, camuflando todo o autoritarismo que permanece vivo em nossa sociedade.

Se aceitarmos as perspectivas autoritárias dentro da justiça criminal, devemos estar cientes de que ela, por sua própria essência, é incapaz de produzir um sistema de freios as arbitrariedades advindas do Poder, aliás, arbitrariedades que podem alcançar qualquer pessoa.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos, tradução: Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal, tradutores: Ana Paula Zomer Sica, Fauzini Hassan Choukr – São Paulo, Revistas dos Tribunais, 2002.

LLOBET RODRÍGUEZ, Javier. Nacional-Socialismo e antigarantismo penal (1933-1945), tradução: Paulo César Busato, 1. Ed, São Paulo, Tirant Lo Blanch Teoria, 2019.

________________, As garantias processuais penais na obra de beccaria e sua atualidade, tradução: Paulo César Busato, Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 8, n. 15, p. 177-202, jul./dez. 2016.

LOPES Jr, Aury. Fundamentos do Processo Penal: introdução crítica. 5 ed, São Paulo, Saraiva, 2019.

SCHEID. Carlos Eduardo. A motivação das decisões penais a partir da teoria garantista. Livraria do Advogado, 2009.

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