Notas sobre o texto ‘O que acontece além do Oceano? Direito e Literatura na Europa’ (Parte 3)
Notas sobre o texto ‘O que acontece além do Oceano? Direito e Literatura na Europa’ (Parte 3)
Leia a Parte 01 aqui e a Parte 02 aqui.
4 – Distinções de Campo e Algumas Propostas
Reconhecendo que há uma falha comum entre as tentativas de interseção do direito com a literatura europeias e americanas – especificamente a falta de atenção metodológica – o texto sugere algumas distinções e operações de caráter metodológico.
4.1 – Distinções de campo: o gênero e a espécie
Nesse sentido o Direito e Literatura, o Direito e Música, o Direito e Arte em geral são espécies do grande gênero Direito e Humanidades (Law and Humanities).
4.2 – Disciplina, metodologia ou movimento?
Enquanto metodologia, o Law and Humanities assume uma característica transdisciplinar que obtém êxito ao envolver a “(…) capacidade de olhar proveniente de diversas áreas do conhecimento” (p. 23).
Enquanto disciplina de ensino, Law and Humanities assume um caráter que pode ser explorado em outros campos do saber que não apenas o jurídico.
Enquanto movimento político, o Law and Humanities atrai mais juristas do que estudiosos de outras áreas, onde há a intenção de criar “(…) uma sensibilidade comum em torno à recuperação da cultura humanista como dimensão fundamental para a realização de um projeto democrático que atualmente – e, aqui, tem razão Nussbaum – interessa a todos” (p. 24).
Até aqui, a análise do texto mostra um interesse maior em fazer publicidade do trabalho realizado na Itália do que efetivamente discutir com profundidade o problema do ponto comum de trabalho nos movimentos de Law and Humanities.
Nesse sentido, vale a pena destacar o texto de Aroso Linhares que tenta estabelecer um ponto comum que possa unir não apenas os vários movimentos de Direito e Literatura, mas também o Direito e Cinema, Direito e Artes Performáticas, entre outros, e o lugar de atuação comum encontrado é a oposição a um discurso de autonomia do direito, autonomia do direito não apenas como um ramo de estudos específico, mas também como autonomia da realidade social, com a correspondente criação de um cosmos normativo isolado e auto suficiente (LINHARES, 2010, p. 37).
Dessa forma, esses movimentos tratam o direito como um conjunto de textos para serem lidos ou para serem atuados, enquanto atribuem a esses materiais uma característica de indeterminabilidade que se torna um parâmetro decisivo da empreitada interpretativa (LINHARES, 2010, p. 34 e 35).
Os movimentos de Direito e Humanidade assumem um discurso comunitarista de área aberta que tenta reaproximar o direito de valores éticos, morais, políticos e culturais para a criação/perpetuação/recriação da sociedade em oposição ao formalismo jurídico centrado na norma e a instrumentalização legalista do direito através do cálculo racional (LINHARES, 2010, p. 26 e 27). O que vem a distinguir fortemente esses movimentos é a resposta apresentada ao problema: qual é o caminho a ser seguido para se afastar desse formalismo redutor da realidade (LINHARES, 2010, p. 27 e s.).
4.3 – Qual o lugar para o Direito e Literatura?
A principal intenção dessa passagem do texto é uma tentativa de traçar uma metodologia para o Direito e Literatura, particularmente anunciando os trabalhos desenvolvidos na Itália.
Dentro do contexto do Direito na Literatura, pode-se destacar que:
(01) para a história do direito, a antropologia jurídica e a sociologia do direito “(…) a literatura destaca-se como testemunho do pensamento e do sentir do homem em relação à exigência de regulamentação normativa da convivência social e política, do passado ou do presente, próxima à própria cultura ou distante dela, a fim de compreender uma experiência jurídica na complexidade do próprio contexto cultural (…)” (p. 25).
(02) para a literatura ou literatura comparada, há a possibilidade de “(…) servir-se do direito como indicador para compreender o contexto de uma obra e de seu autor, sendo o direito (considerado seja como lei, seja como direito informal) um fator representativo e de grande influência nas culturas e nas sociedades de dado período histórico (…)” (p. 25) o que deve ser feito através da reunião das “(…) diversas habilidades em torno da identificação da obra, do autor e do contexto, como campo comum de investigação, de modo que, mesmo com a diferença dos objetivos cognitivos, tanto o Direito quanto a Literatura possam operar a seleção das informações mais úteis para o seu próprio avanço e, contextualmente, serem assistidos na interpretação dos dados sob exame (…)” (p. 25 e 26).
(03) dentro da filosofia do direito, “(…) os problemas que se colocam para os críticos literários são levados a sério pelos filósofos do direito e vice-versa. Da análise sobre a relatividade, a incerteza, a ambiguidade da justiça humana em face da contínua tensão na busca de um absoluto da justiça que proteja o homem da sua atração pelo mal e pelos excessos, do inevitável sentimento de culpa, à redescoberta da natureza corpórea esquecida pelo direito (e da sua recusa ao desejo e à materialidade), às análises que comentam os universais jurídicos implícitos na convivência social, além daquelas teses que afirmam os conteúdos e os valores da ética jurídica com o objetivo de resguardar um direito à altura do homem: nesse campo, as obras literárias e artísticas permitem habitar não apenas a complexidade da justiça como limite e medida das ações humanas, mas também se concentrar no espaço do indecidível, no silêncio de Dike como já encontramos em Sólon e, não por acaso, em um dos seus fragmentos poéticos (…)” (p. 29 e 30).
Já no contexto do Direito como Literatura:
(01) na sociologia do direito, o direito seria observado como um fenômeno comunicativo, onde “(…) para qualquer problema que se queira enfrentar (funções, eficácia, impacto etc.), é necessário compreender a norma na sua qualidade de constructo simbólico, condicionado pelos mecanismos de codificação e de composição do texto, pelos diversos canais no processo de comunicação, assim como pelos problemas relacionados à recepção e à decodificação da mensagem (…)” (p. 26), onde há uma aproximação da sociologia do direito com os estudos léxicos e da composição dos textos jurídicos, permitindo que essa análise também seja feita por estudos literários;
(02) quando se pondera a atividade de construção narrativa, há um campo fecundo para o estudo quando se pondera a “(…) construção do imaginário jurídico comum: lá onde as narrativas jurídicas vêm alteradas, nascem expectativas, iniciam-se e compartilham-se lutas, atendem-se funções que o direito nem sempre pode cumprir ou que restam latentes (…)” (p. 27);
(03) dentro dos estudos da linguística e semântica, há a “(…) pesquisa desenvolvida por linguistas com o objetivo de “simplificação” da linguagem jurídica. “Simplificar” não significa apenas reduzir, descomplicar, remeter a língua do direito ao italiano; é também “esclarecer” o teor da norma, e isso não pode ser deixado para os linguistas. Nesse caso, a intervenção dos filósofos analíticos não serve somente para levar a melhores resultados, mas sobretudo para diminuir o risco de distorção do sentido (…)” (p. 28);
5 – In-conclusão
O texto conclui declaradamente sem concluir, apontando a grande dificuldade da abordagem transdisciplinar presente no direito “(…) Porque essas formas de abordagem metodológica não consistem apenas em técnicas, mas se tornam pontos de encontro de diversas identidades que têm em comum as próprias especificidades, que pedem humildade de quem se põe em relação com o “outro”. Uma cultura da diferença que vem mantida, contra uma globalização frenética que conduz ao achatamento do olhar para um único horizonte. De fato, estamos na fenda mais originária da pesquisa e do conhecimento” (p. 31).
REFERÊNCIA DO TEXTO-BASE PARA O RESUMO
MITTICA, M. Paola. O que acontece além do oceano? Direito e literatura na Europa. ANAMORPHOSIS – Revista Internacional de Direito e Literatura, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 3-36, maio 2015. ISSN 2446-8088. Disponível aqui.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
GODOY, Arnaldo Sampaio de Moares. Direito, Literatura e Cinema: Inventário de Possibilidades. São Paulo: Quatier Latin, 2011;
SNEDAER, Kathry Holmes. Storytelling in Opening Statements: Framing the Argumentation of the Trial. In: Narrative and the Legal Discourse: a reader in storelling and the Law. Coordenação: PAPKE, David Ray. Liverpool: Deborah Charles Publications, 1991;
MINDA, Gary. Postmodern Legal Movements: Law and Jurisprudence at Century’s End. Nova York: New York University Press, 1995;
BARON, Jane B. Law, Literature, and the Problems of Interdisciplinarity. In: Yale Law Journal. Nº 108, 1999;
LINHARES, José Manuel Aroso. Law in/as Literature as an Alternative Humanistic Discourse: the Unavoidable Resistance to Legal Scientific Pragmatism or the Fertile Promise of a Communitas without Law? In: DOSSIER LAW AND LITERATURE A Discussion on Purposes and Method. Italian Society for Law and Literature. Editora: Paola Mittica. 2010. Disponível aqui.