As alternativas perante à justiça do absurdo: um diálogo com Kafka e Shakespeare
As alternativas perante à justiça do absurdo: um diálogo com Kafka e Shakespeare
Nota introdutória: Na coluna da Comissão de Estudos Direcionados em Direito & Literatura do Canal Ciências Criminais, apresentamos aos leitores um pouco daquilo que vem sendo desenvolvido pela comissão nessa terceira fase do grupo. Além da obra que será produzida, a comissão se dedica a pesquisa e ao debate sobre questões presentes na temática “Direito & Literatura”. Em 2019, passamos a realizar abordagens mais direcionadas nos estudos. Daí que contamos dois grupos distintos que funcionam concomitantemente: um focado na literatura de Franz Kafka e outro na de George Orwell. Assim sendo, alguns artigos foram selecionados e são estudados pelos membros, propiciando uma salutar discussão entre todos. Disso se resultam as ‘relatorias’ (notas, resumos, resenhas, textos novos e afins), uma vez que cada membro fica responsável por “relatar” determinado texto por meio de um resumo com seus comentários, inclusive indo além. É o que aqui apresentamos nessa coluna, almejando compartilhar com todos um pouco do trabalho da comissão.
O texto da vez, formulado pelo colega Gustavo Queiroz, foi feito com base no artigo “As Alternativas Perante À Justiça Do Absurdo: Um Diálogo Com Kafka e Shakespeare”, de Clara Rossatto Bohrz – publicado nos anais do V CIDIL. Vale conferir! (Paulo Silas Filho – Coordenador das Comissões de Estudos Direcionados de Direito & Literatura – Orwell e Kafka – do Canal Ciências Criminais)
O artigo a seguir analisado, foi intitulado “AS ALTERNATIVAS PERANTE À JUSTIÇA DO ABSURDO: UM DIÁLOGO COM KAFKA E SHAKESPEARE”, escrito por Clara Rossato Bohrz a partir da obra ‘O Processo’ de Franz Kafka e da literatura, passando por algumas obras de Shakespeare, como instrumento capaz de tornar o jurista mais sensível e atento à sua existência e dos outros, combatendo o processo de desumanização da justiça, buscando para isso alternativas e resolução de conflitos que garantissem um acesso à justiça mais efetivo e humano.
Para tanto a autora utiliza-se da metodologia hermenêutica filosófica em conjunto com pesquisa bibliográfica e documental, dividindo o trabalho em duas partes, a primeira discorrendo sobre a crise do sistema jurídico brasileiro e a segunda abordando em que medida os meios consensuais de resolução de conflitos podem colaborar para a construção de uma nova cultura de solução de litígios.
Quanto à crise do sistema jurídico brasileiro Bohrz inicia traçando um paralelo entre a crítica social Kafkiana contida em trechos da obra O Processo, sobre a burocratização, alienação, estrutura e funcionamento da justiça e seus funcionários, bem como dos tramites processuais e as normas jurídicas, com a promiscuidade, obscuridade e sobre o próprio ar daquele ambiente, sempre abafado e pesado, quase irrespirável à princípio, mas que com o tempo é possível se acostumar (Kafka, 2015, p. 87-88):
No que diz respeito ao ar, porém ele é, em dias em que há muito movimento das partes interessadas, e isso acontece quase todos os dias, praticamente irrespirável. (…). Quando o senhor vier pela segunda ou terceira vez para cá, mal perceberá o sufoco que reina por aqui.
Também é possível notar acrítica social Kafkiana em relação aos funcionários públicos que sequer conhecem suas funções, limitando-se a cumprirem ordens, são peças alienadas dentro do sistema, conforme se observa da situação em K tenta impedir uma violência sem sentido por parte de um agente do Estado: “- O que estás a dizer parece-me digno de crédito ― disse o verdugo. ― Mas não me deixo subornar. Empregaram-me para bater e, portanto, bato”. (Kafka, 2015, p. 108). É o preciso reflexo entre o real e o fictício no uso estratégico que o Estado pode fazer de seus agentes alienados, do policial que é pago para ser violento e intimidador, bater, torturar e até mesmo matar, cumprir ordens sem questionamento, incapaz de refletir sobre suas reais funções, deveres etc, e se estes estão de acordo com seus atos.
Discorre a autora em seguida sobre o poder de atração da justiça, começando com as impressões iniciais de Joseph K sobre a justiça, o processo e sua utilidade, que seriam mais simbólicos do que reais, colocando em cheque a própria necessidade do seu processo e dos demais, denunciado assim a cultura da judicialização das demandas.
Em seguida é feito um recorte temporal, histórico e teórico que a influenciou a obra, já que ao final do século XIX e início do XX, a Europa estava dividida e em busca de identidade, caracterizada por um sentimento de forte nacionalismo, bem como esse período é marcado pelo niilismo de Nietzsche, o pessimismo de Schopenhauer, a segunda revolução industrial e novas teorias científicas como a de Einstein sobre a relatividade, balançando o pensamento positivista que marcava período anterior, calcado na certeza, causando um sentimento de muita incerteza no período, reflexos que são sentidos na obra de Kafka, imagem dessa realidade, e na sua visão de justiça.
Outros fatores como as características da modernidade, a racionalização, a burocracia, o individualismo crescente, levaram a justiça a ser assim, vinda de uma letra escrita num papel e codificada em grandes tomos, indiferente aos fatores econômicos, sociais, culturais etc, prega uma igualdade que não existe, é meramente formal, enquanto que a substancial, uma igualdade de fato, ainda é um desejo longe de ser alcançado. É nessa justiça que são depositadas as esperanças de todas as demandas, com todos os seus defeitos ela ainda a é fascinante:
A justiça tem um poder de atração bem peculiar, não é verdade? (Kafka, 2015, p. 42).
Qual é o panorama da justiça brasileira? Ela é eficiente? Com esses motes que se desenvolvem os pontos seguintes do texto.
[…] Às vezes, acontecia que as primeiras petições nem sequer eram lidas no tribunal” (Kafka, 2015, p.138). “Como são demorados tais processos, sobretudo nos últimos tempos (Kafka, 2015, p.17).
A garantia constitucional do acesso à justiça, também denominada de princípio da inafastabilidade da jurisdição, está consagrada no artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, dispõe que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Não basta que todos tenham acesso à justiça, ela precisa ser eficiente, ser célere, não se demorar injustificadamente, pois de nada adiante ter acesso se a resposta é tardia, nas palavras da “Águia de Haia”:
Justiça tardia não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta. (Rui Barbosa).
Por isso primeiro é importante compreender a situação da justiça brasileira, e para tanto apresenta a autora dados do Relatório Justiça em Números de 2015 e dados do CNJ demonstrando que a judicialização é um fenômeno sintomático do Brasil que possui cultura litigante, pois os dados em:
2015 revelam que dos 99,7 milhões de processos que tramitaram no Judiciário brasileiro no ano de 2014, 91,9 milhões encontravam-se no primeiro grau de jurisdição, o que corresponde a 92% do total. Não bastando a excessiva carga de processos destina ao primeiro grau, a força de trabalho disponibilizada a esses tribunais (tanto na justiça estadual como federal) é consideravelmente inferior. Assim, analisando-se todo o judiciário, a carga de trabalho por servidor da área judiciária é de 506 processos no primeiro grau e de 232 no segundo, uma diferença de 118% (CNJ, 2016).
Esse fenômeno da hiperjucialização tende a aumentar cada vez mais em razão da evolução social, dos instrumentos disponíveis de judicialização, presença da Defensoria Pública e outros órgãos, maior informação da população sobre os seus direitos, e do próprio desrespeito dos direitos pelo Estado e outros atores sociais, além do abuso desse direito por alguns, como demandas levianas, má-fé etc. Sobre essa realidade, em 2015 o Ministro do STF Luis Roberto Barroso afirmou que:
Vamos ter que viver um processo de desjudicialização, no qual o bom advogado deixará de ser aquele capaz de propor uma boa demanda, mas sim de evitá-la (Globo Online, 2016).
Esse é o panorama da justiça brasileira, que atrai todas as demandas para si, mas que não consegue solucioná-las de maneira eficaz.
Algumas medidas foram tomadas para tentar trazer maior eficiência a solução das demandas, tais como a informatização dos processos judiciais a partir de 2006 pela Lei nº 11.419/06, o estabelecimento de metas pelo CNJ, o aperfeiçoamento das súmulas.
Recentemente o NCPC deu extraordinária importância à jurisprudência ao estruturar um sistema obrigatório de precedentes. Determinou que os Tribunais a uniformizem e a mantivessem estável, íntegra e coerente, editando enunciados de súmulas correspondentes a sua jurisprudência dominante, na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, observando o disposto nos art. 926 e 927 do CPC, criando o sistema de julgamento de casos repetitivos que são vinculantes, buscando com isso promover a celeridade, evitando demandas desnecessárias, a igualdade nos julgamentos que contenham as mesmas situações, maior confiança e a segurança jurídica pela previsibilidade do Direito, a maior racionalizando do sistema, buscando também evitar que o Direito fique subordinado à subjetividade volúvel dos magistrados.
Esse subjetivismo não é só quanto as posições jurídicas, pode ser ideológico, moral e mesmo imoral, isso é um dos fatores que abalam a credibilidade à justiça, ao seu sistema e atores, o advogado, o juiz, o promotor, com notícias corriqueiras de condutas antiéticas, criminosas, de corrupção e improbidade administrativa, abuso e autoritarismo em razão da função que exercem, essa realidade é histórica e aparece também na literatura, como na obra “Medida por Medida”, Shakespeare ao tratar do personagem Ângelo, ironiza a discricionariedade abusiva dessas autoridades, como na passagem em que em que o juiz Ângelo faz uma proposta a Isabella para que ceda ao seu amor em troca de decisão favorável; e ela assim o responde:
Vou te denunciar Ângelo, podes esperar. Assina para mim o imediato perdão de Cláudio, senão eu vou, com todo o volume que alcança a minha garganta, gritar ao mundo o tipo de homem que tu és (Shakespeare, 2014, p.67).
É preciso lembrar, entretanto, que apesar desses instrumentos inovadores buscarem celeridade, ala por si só não é capaz de enfrentar os desafios do judiciário, pois com esse modelo de produção em massa, mecânico, industrializado, corre-se o risco de em nome da celeridade haver uma justiça temerária, claudicante, que se importe apenas com números, resultados, cumprimentos das metas, uma abstração que desprestigie um tratamento digno aos litigantes e suas demandas concretas, esquecendo-se que por trás daqueles processos, páginas, artigos, decisões, etc, estão as pessoas. Se não ministrados corretamente os remédios podem fazer mais mal à saúde do que a doença a ser tratada.
Nesse contexto que aproxima o real do ficcional retratado por Kafka, quais seriam, portanto, as alternativas possíveis diante da justiça do absurdo?
As inciativas concentram-se nos meios consensuais de resolução de conflitos e mais uma vez o NCPC foi inovador ao trazer nas suas Normas Fundamentais, prever instrumentos como a arbitragem, a conciliação, as mediações, entre outros, permitindo que as partes acordem durante o processo, mesmo no curso do processo, já havendo decisões dos tribunais superiores de que mesmo após sentença é possível as partes transigirem, privilegiando assim a vontade das partes sobre a judicial.
Assim também há registro na literatura, como ao final da obra “O Mercador de Veneza”, embora não seja como termine o julgamento, o judeu Shylock, estando em apuros no Tribunal de Veneza (com a personagem Portia disfarçada de juíza), acaba negociando os termos em que seria executado o contrato que o onerava, aceitando a proposta feita anteriormente:
PÓRCIA – Não pode o mercador pagar a dívida?
BASSÂNIO – Pode, sim; deposito ante esta corte, ele, essa importância… não, o dobro. Caso isso ainda não baste, comprometo-me a dez vezes pagar a mesma dívida, no que empenho a cabeça, as mãos, o próprio coração.
(…)
PÓRCIA – Pertence-te uma libra aqui da carne do mercador; a corte o reconhece, porque a lei o permite.
PÓRCIA – E deveis retirá-la justamente do peito dele; a corte o reconhece, porque a lei o permite.
PÓRCIA – Um momentinho, apenas. Há mais alguma coisa. Pela letra, a sangue jus não tens; nem uma gota. São palavras expressas: “Uma libra de carne”. Tira, pois, o combinado: tua libra de carne. Mas se acaso derramares, no instante de a cortares, uma gota que seja, só, de sangue cristão, teus bens e tuas terras todas, pelas leis de Veneza, para o Estado passarão por direito.
SHYLOCK – A lei diz isso?
PÓRCIA – Podes ver o texto. Reclamaste justiça; fica certo de que terás justiça, talvez mesmo mais do que desejaras.
SHYLOCK – Nesse caso, concordo com a proposta: que me paguem três vezes a importância da dívida […]
A arbitragem, diferentemente, é acordada mediante cláusula ou compromisso arbitral, tendo por objetivo a informalidade, rapidez e especialidade nas decisões proferidas por quem foi eleito pelas partes. Nesse sentido, Owen Fiss (1979, apud Marinoni, 2013, p. 162):
A arbitragem assemelha-se à jurisdição pelo fato de também procurar um julgamento correto, justo, verdadeiro. Há, no entanto, uma diferença nos dois processos decorrente da natureza do órgão decisor – um privado, e outro público. Árbitros são pagos pelas partes; escolhidos pelas partes; e influenciados por uma série de práticas (como uma relutância em redigir opiniões ou gerar precedentes) que localizam ou privatizam a decisão.
Quando se pensa em meios alternativos de resolução de conflitos, existe também a possibilidade da criação de órgãos, comissões especiais para atuação especializada, como discorre Bohrz sobre Tribunal das Águas de Valência, a mais antiga das instituições jurídicas da Europa. Caracterizado pela sumariedade, oralidade, rapidez e economia processual, esse tribunal resolve os conflitos que envolvem os campesinos dos sistemas hidráulicos de Tormos, Mestalla, Rascanya, Quart, Mislata, Favara e Rovella há mais de mil anos, sendo destacado como joia do patrimônio cultural valenciano. Abaixo, a obra El tribunal de las aguas do pintor espanhol Bernardo Ferrándiz Bádanes, datada de 1865 (Ilustração 1).
Ilustração 1 – El tribunal de las aguas, Bernardo Bádanes, 1865
Por último a autora reforça a importância de um ensino jurídico de qualidade para a formação de juristas humanos que possam lidar com a situação existente, bem como com os desafios do futuro.
A autora chama a atenção ainda para a grande quantidade de cursos de Direito existentes, bem como do número de formados que ingressão no mercado de trabalho todos os anos, questionando a formação destes futuros profissionais, que não deve ser apenas técnica, como um mero operador do direito, como se fosse um operador de uma máquina, que sabem apenas operar, desconhecendo como funciona o todo em que está inserido, quando essa formação deveria ser holística, crítica, interdisciplinar, humana, sensível, como é a própria natureza humana. Criticando a baixa qualidade acadêmica existente o professor e Juiz de Direito Alexandre Morais da Rosa assevera que “Por força da (de)formação acadêmica, pouco se sabe da estrutura, mas os assistentes executam as regras com vontade, vontade que lhe fora confiada pelo Outro” (Morais da Rosa, 2013, p.12).
Sobre a visão do acadêmico de Direito, sua postura, por vezes arrogante, preocupado com a aparência, a tradição, o formalismo etc, Kafka trouxe em sua obra um personagem estudando de Direito:
[…] K. levantou os olhos vagarosamente. Na porta da sala de reuniões estava parado um jovem; ele era baixo, tinha pernas não de todo retas e tentava dar dignidade a si mesmo por meio de uma barba curta, volumosa e avermelhada […] K. olhou com curiosidade, ele era o primeiro estudante da desconhecida ciência do direito que encontrava, por assim dizer, pessoalmente; um homem que, ao que tudo indica, também alcançaria um dia os postos mais altos do funcionalismo.
Nesse sentido a literatura cumpre um papel importe a formação dos juristas, capaz de provocar sentimentos humanos diversos, experimentar aquilo que não teria como fazer na realidade, a literatura auxilia nesse processo pois
as artes levam-nos à dimensão estética da existência e – conforme o adágio que diz que a natureza imita a arte – elas nos ensinam a ver o mundo esteticamente (Morin, 2003, p.44).
De nada adiante a criação de instrumentos legais adequados a solução de conflitos se os juristas tiverem baixa formação humanística, não possuindo empatia com seus jurisdicionados, alienados em suas funções e realidades, encastelados em seus gabinetes e papeis. Bem por isso um ensino voltado à formação jurídica de qualidade pode produzir melhores resultados do que a implementação de institutos jurídicos modernos. A Educação, conforme uma ideia conhecida do patrono da educação brasileira a educação não transforma o mundo, ela muda pessoas e as pessoas transformam o mundo, afirmando ainda que:
ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção (Freire, 2006, p.22).
Assim, diante do cenário da justiça do absurdo em que estamos, a ampliação de institutos jurídicos que aumentem a eficiência da justiça, como os meios consensuais de resolução de conflitos, bem como uma maior qualidade na formação humana dos juristas, com a presença da literatura, são essenciais ao presente e aos desafios futuros.
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